Há jazz, há hip-hop e até há matemática na música de Soweto Kinch

De quinta a sábado, o Cais das Colunas recebe o festival Lisboa Mistura. Na sexta-feira, o palco será de Soweto Kinch, saxofonista e MC britânico exímio a juntar jazz e hip-hop numa linguagem própria.

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Soweto Kinch DR
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A marroquina Oum DR
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A cantora turca Gaye Su Akyol DR
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La Chiva Gantiva, pot-pourri belga-colombiano
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Projecto AAMA

A música de Soweto Kinch não soa exactamente a matemática. É demasiado livre, adere pouco a regras, procura a espontaneidade e a imprevisibilidade, tudo em doses que não deixam adivinhar ser feita de equações, fórmulas ou teoremas. Mas foi de alguns princípios matemáticos que o saxofonista e MC britânico partiu para abordar a composição de Nanogram, o seu quinto álbum. Em parte, porque desenvolveu um interesse muito particular pela escala Solfeggio, baseada num algoritmo inspirado pelo Livro dos Números, da Bíblia, e assente na teoria de que “certos sons podem produzir determinados efeitos em nós”, explica ao PÚBLICO; mas mais ainda pela vontade de procurar uma linguagem musical que transcendesse tribos ou nacionalidades.

Ou seja, Nanogram responde à observação por Soweto Kinch de que há um número crescente de “pessoas mais estratificadas e tribais politicamente”: “As discussões sobre identidade e nacionalismo tornaram-se tão tóxicas que quis encontrar uma linguagem que funcionasse por oposição às formas lineares e bidimensionais de pensar o mundo.”

Começou, por isso, a imaginar o que seria deixar-se permear pelas histórias menos habituais da História, recordando viagens na Palestina em que descobriu a narrativa dos palestinianos cristãos ou dos judeus opositores do estado de Israel. “Então e se em vez da bidimensionalidade olhasse para um triângulo ou pra um hexágono?”, perguntou-se. “Quando transportamos coisas que soam muito abstractas para o mundo em que vivemos, isso acaba por elevar as nossas perspectivas sobre o mundo. Contemplar formas e números dá-nos ferramentas de aplicação universal.”

Este tipo de “análise quase forense” que foi desenvolvendo após a edição de The Legend of Mike Smith (2013), álbum dedicado aos sete pecados mortais, levou-o a uma reflexão sobre os universos das duas músicas que o apaixonaram entre a puberdade e a adolescência – o jazz e o hip-hop. Em particular, essa análise levou-o também a pensar na divisão entre o hip-hop declaradamente político, “em que os rappers são muito conscientes e falam em ser anti-Trump ou algo do género”, e um hip-hop apolítico “que se limita a dizer ‘abana o rabo na discoteca’.” “Meditei nisso um bocado e perguntei-me se o ‘abana o rabo na discoteca’ não é tão ou mais político. É importante para mim injectar num disco uma forma nova de olhar para as coisas, que permita até destrinçar melhor o que é político e onde a política não é necessária.”

Seja com princípios matemáticos, a vida no seu bairro de Birmingham (A Life in the Day of B19) ou os sete pecados mortais, Soweto costuma trabalhar sobre um enquadramento temático que o possa desafiar a investir em novos territórios tanto na composição quanto nas letras. “No caso de Legend of Mike Smith”, exemplifica, “ter de compor no estilo da ganância ou da inveja levou-me a explorar a minha composição e a minha performance em direcções diferentes". E isso, diz, é "muito gratificante”

Dois mundos 

Soweto Kinch nasceu em Inglaterra, em 1978, dois anos depois do sangrento episódio no subúrbio de Joanesburgo (Soweto) em que a repressão policial do Apartheid esmagou um protesto estudantil que clamava por igualdade no ensino. O nome do músico não esconde, portanto, a sua origem num “acontecimento de grande importância cultural, em que os negros reconheciam o quão demoníaco era o Apartheid, um regime disposto a matar crianças para se defender”.

Para Soweto, como para qualquer outro jovem crescido naquela altura, “o hip-hop estava a tornar-se o novo rock’n’roll”, e aos 11 anos os seus ouvidos viram-se tomados de assalto pelo choque de ouvir pela primeira vez nomes tão influentes quanto Public Enemy, N.W.A. e, em específico, 3 Feet High and Rising, dos De La Soul. A semente para a natural coabitação entre jazz e hip-hop na sua música seria logo lançada por esse clássico, mas só aos 13 anos – numa altura em que já começara a “fazer freestyling com regularidade, a participar em battles, a fazer batidas e a integrar a cultura hip-hop na totalidade” –, ao acompanhar o pai ao Festival Fringe, em Edimburgo, se confrontou com a outra revolução musical da sua vida. “Foi quando conheci o Gary Crosby e o Wynston Marsalis, num encontro com o jazz que, desde então, me fez querer ouvir tudo o que era Sonny Rollins e Charlie Parker.” Kinch já tocava saxofone desde os nove anos, mas “os géneros não acendem as paixões, são as experiências que o fazem”.

Depois, quanto mais aprofundava o conhecimento dos dois mundos, mais percebia os pontos onde se tocavam, mais se encantava com A Tribe Called Quest, Pharcyde, Digable Planets, gente que foi desbravando o caminho que Soweto Kinch agora assume como inevitável na sua vida, e que será apresentado esta sexta-feira no Cais das Colunas, na segunda noite do Lisboa Mistura, festival dirigido por Carlos Martins que desde a primeira edição coloca a multiculturalidade no centro da sua programação.

Nessa mesma noite, actuará ainda a cantora marroquina Oum, enquanto na quinta-feira se apresentará a OPA – Oficina Portátil, colectivo composto por jovens de vários bairros lisboetas sob a orientação de Francisco Rebelo (Orelha Negra), assim como o pot-pourri musical belga/colombiano La Chiva Gantiva. No sábado será a vez da cantora turca Gaye Su Akyol e do Projecto AAMA, de fusão entre jazz, flamenco e bossa nova. Sexta e sábado há arruada de batucada pelos Nice Groove. Caberá ao DJ Rykardo arrancar com a festa ao fim da tarde nos três dias.

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