Há histórias contadas no saxofone de Mette Henriette

Revelação fulgurante no jazz europeu, a saxofonista norueguesa toca o seu disco de estreia em Coimbra e no Seixal.

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ANTON CORBIJN
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Uma das primeiras pessoas a perceber que havia em Mette Henriette algo de muito particular foi a artista Marina Abramovic. Henriette, juntamente com outros 269 residentes em Oslo, foi recrutada para dar uma nova vida ao quadro O Grito, de Edvard Munch, sendo pedido a cada um que gritasse, enquadrado por uma moldura com as mesmas dimensões do quadro pintado em 1893, à frente da mesma paisagem que terá inspirado a mais célebre obra de Munch. No dia da estreia do vídeo resultante da documentação de todos os gritos, Abramovic dirigiu-se à jovem saxofonista e disse-lhe: “Tu és diferente e gostava que fizéssemos alguma coisa juntas.”

Passado um ano, em 2014, numa das suas viagens cada vez mais regulares a Nova Iorque para partilhar palcos com músicos norte-americanos, Mette Henriette avisou a artista da sua passagem pela cidade e foi chamada a casa de Abramovic, sendo de pronto convocada para uma performance integrada no programa Future Feminism. Através desta e de outras colaborações, Mette começava aos poucos a perceber o lastro deixado por estas experiências nas suas composições. “Quando faço música”, diz ao PÚBLICO, “penso algumas das peças como narrativas, tableaux, cores, formas de iluminar objectos ou movimentos. A música relaciona-se, para mim, de forma muito próxima com as artes visuais, a dança, a arquitectura.”

Toda essa ligação ao universo visual ganha um sentido claro quando se ouve a estreia de Mette Henriette, um notável álbum duplo lançado em 2015 pela criteriosa ECM, rapidamente impondo a saxofonista nascida em 1990 como uma das mais fulgurantes revelações do jazz nos últimos anos – o The Guardian chamou-lhe “uma estrela em ascensão da música contemporânea”. Nesse álbum homónimo, distendido e contemplativo, Henriette põe em prática aquilo a que chama “música vinda de um lugar abstracto e profundo” dentro ou fora de si, mas que nunca vai atrás de um groove insinuante ou de uma escala soprada com pressa de chegar a algum lado.

Fiel a uma concepção da música como veículo para contar histórias, assume-as com o vagar próprio de quem não está disposta a ceder à velocidade impressa pela vida a reboque das tecnologias, criando um lugar aberto a ser visitado e preenchido por memórias – tais como o som de uma coruja ouvido em criança, o primeiro que quis imitar, ou os discos escolhidos pelo pai como banda-sonora para o pequeno-almoço. “A música tem o poder de nos transportar para as nossas recordações e o poder de trazer esperança para o futuro”, defende. “E as pessoas precisam disso no seu dia-a-dia.”

Tropeçar na ECM

Mette Henriette, o álbum homónimo que a saxofonista apresenta esta sexta-feira no Jazz ao Centro (Coimbra) e sábado no Seixal Jazz, ouve-se como uma demorada e paciente investigação em busca de silêncio, transcendência e beleza, dedicando o primeiro CD à música gravada em trio e o segundo a um ensemble de 13 elementos. Era nesta música que andava a trabalhar quando numa noite de sábado, em Oslo, viu um poster que anunciava um concerto de Dino Saluzzi (que esta noite abre o Seixal Jazz) para essa mesma data. Pôs-se a caminho da sala e conseguiu um lugar nas escadas. Quis o acaso que Manfred Eicher, o patrão da ECM, tropeçasse nela. “E fizemos aquilo que era natural numa ocasião daquelas”, ri-se, recordando o momento que a levou a gravar por uma das editoras nucleares do jazz europeu. “Ele disse ‘desculpe’, eu respondi ‘olá’. E começámos a conversar.”

Em qualquer outra editora, é pouco provável que Henriette encontrasse disponibilidade para que a sua estreia resultasse num álbum duplo, e talvez tivesse acabado a lançar dois volumes espaçados no tempo. Só que, como diz a saxofonista, nem um nem outro são “indústria”. E se a música fazia sentido em conjunto, se era o resultado de Mette se ter “limitado a seguir a sua natureza”, não havia razões válidas para separar as suas duas faces. “O trio”, explica, “é simplesmente uma versão encurtada do ensemble maior; assim como o ensemble é uma mera versão alargada do trio. E ambos comunicam e acrescentam algo, tudo se encaixa e há partes que se repetem múltiplas vezes nos dois.”

Não significa isto que Mette Henriette caia na repetição: é uma descoberta constante. A raridade absoluta que é encontrar uma linguagem tão sólida e tão pessoal num primeiro disco talvez seja reflexo de uma instrumentista que sempre rejeitou o caminho de copiar o exemplo de outros, confessa nunca ter tido um ídolo e foi tão formada pela escuta de John Coltrane quanto de flamenco, tango, canções de cabaret, música da Rota da Seda, hip-hop e Michael Jackson. Não é que cada uma destas referências tenha a mesma preponderância na música que faz, mas talvez seja a sua coexistência em Mette que, em parte, a torna tão particular.

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