Há ciência no arroz-doce dos monges de Tibães

Investigadores das universidades de Lisboa e do Minho estão a mostrar os segredos por detrás das receitas que se comiam no refeitório do mosteiro beneditino de Braga.

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Fernando Veludo/NFACTOS

Se conseguimos pensar no refeitório do mosteiro de Tibães repleto de monges, não será difícil incluir sobremesas nessa imagem. Os beneditinos eram grandes consumidores de doces, em particular de arroz doce, um dos pratos mais comuns nos menus da casa mãe da congregação beneditina em Portugal. “Se não houvesse mais nenhum doce, havia seguramente arroz doce à mesa”, conta Anabela Ramos, técnica superior do mosteiro, que tem investigado o tema. Mas qual é segredo capaz de fazer desta uma iguaria apreciada?

Foi a isso que Margarida Guerreiro, investigadora da Cooking.Lab, uma empresa nascida na Universidade de Lisboa, respondeu este sábado, na cozinha da hospedaria actualmente existente no mosteiro. Foi a primeira sessão do Gastronomia com um pouco de ciência, um programa criado pelo Grupo de Amigos do Mosteiro de Tibães que pretende desvendar os factos científicos que existem em cada uma das receitas que preenchiam as mesas dos religiosos de Braga.

O segredo de um bom arroz doce? “Está no tipo arroz usado”, explica Margarida Guerreiro. Mais do que os ovos ou o leite, é o cereal que dá a característica certa a esta sobremesa que fazia as delícias dos religiosos de Tibães. Quanto mais baixo o teor de amilose, uma das moléculas do amido presente neste cereal, mais cremoso ficará o doce, como acontece, por exemplo, com o arroz carolino, um grão com características “excelentes” para este efeito. Tanto mais que é comum em Portugal, e, muito provavelmente, terá sido o tipo de arroz usado com maior abundância pelos monges do mosteiro de Braga.

Ao contrário do que acontecia nos conventos femininos, nos mosteiros masculinos os frades não cozinhavam. Assim também sucedeu em Tibães, onde havia um criado cozinheiro responsável por produzir as refeições quotidianas dos monges e que se encarregava também de confeccionar algumas das sobremesas que estes comiam. No entanto, a maior parte da doçaria consumida pelos beneditinos era encomendada fora, quer a doceiras da cidade de Braga, quer a religiosas de conventos da região, sobretudo as franciscanas do Convento de Nossa Senhora dos Remédios e as beneditinas do Convento do Salvador, ambos situados em Braga.

O arroz doce era um dos poucos doces confeccionados pelo cozinheiro da congregação na cozinha do mosteiro de Tibães. “Era a sobremesa mais típica”, sublinha Anabela Ramos, técnica superior do mosteiro, que se tem debruçado sobre a alimentação dos monges beneditinos, sobretudo no século XVII. Na sua investigação, encontrou registos frequentes de compra de leite para fazer este doce.

Outra produção de Tibães de que existem registos são as compotas e doces de frutas. As mais comuns eram a marmelada, a pessegada, a perada ou o doce de abóbora, feitos com base nos frutos produzidos na própria cerca do mosteiro bracarense. Estes doces eram consumidos “quotidianamente no refeitório, sobretudo nos períodos de jejum e abstinência”, conta também Anabela Ramos. Os monges acreditavam que a doçura das compotas os ajudava a retemperar as forças nos períodos em que a religião lhes impunha menor abundância na alimentação.

Os doces de fruta foram outra das comidas que constavam no menu dos beneditinos de Tibães que as investigadoras da Cooking.Lab abordaram no workshop deste sábado. As receitas de compotas de hoje não são muito diferentes das que se faziam no século XVII no mosteiro. Por isso, aos participantes foi dado a conhecer uma forma de simplificar o processo de confecção, usando um extracto de pectina. A pectina é um polissacárido presente nos frutos, de que o marmelo é um exemplo particularmente rico. É a sua acção que permite dar a textura e consistência às compotas. O uso do extracto torna o processo mais simples e rápido. “Os monges ficariam surpreendidos com a facilidade com que podemos hoje fazer uma compota”, aponta Conceição Dias, gerente da empresa e investigadora na Universidade de Lisboa.

É este o tipo de propostas que habitualmente é feita pela Cooking.Lab, mostrando a ciência que está por trás da comida, mas está é a primeira vez que algo do género é feito tendo por base os hábitos alimentares de um centro religioso como foi o mosteiro de Tibães. A empresa foi criada em 2007, a partir de um projecto de divulgação de ciência feito no âmbito de um grupo de investigação do Instituto Superior de Agronomia da Universidade de Lisboa. Esse trabalho tinha começado seis anos antes, com a iniciativa A cozinha é um laboratório, no âmbito do programa Ciência Viva.

Hoje, o objectivo dos investigadores ligados à Cooking.Lab continua a ser fundamentalmente o mesmo, explica Conceição Dias: “O nosso contributo é levar a cultura científica às pessoas, através dos meios mais variados. A cozinha é uma boa forma de o fazermos”.

Depois do primeiro workshop realizado neste sábado, o cruzamento entre a comida dos monges de Tibães e a ciência vai continuar a fazer-se até Maio do próximo ano. O programa Gastronomia com um pouco de ciência será encerrado com a palestra Diz-me como comes, dir-te-ei de onde és..., onde a professora da Universidade Nova de Lisboa Paulina Mata vai abordar as regras, convenções e normas sociais à volta do acto de comer.

Até lá há ainda muito para aprender quanto aos hábitos de alimentação dos monges do Tibães, e aos segredos que estão por detrás de algumas das iguarias por eles consumidas. Em Maio, Conceição Dias vai orientar uma sessão à volta dos micróbios presentes em vários petiscos. A investigadora vai lembrar que alimentos como o queijo, o vinho e a charcutaria são produtos fermentados, que estão presentes quase diariamente nas mesas da maioria da população.

Quanto a Tibães, pelo menos o vinho era seguramente produzido na cerca do mosteiro e, ao longo do tempo, os enchidos e o queijo terão sido introduzidos na sua alimentação – ainda que não haja evidências documentais disso.

Mais seguro é que os monges beneditinos comiam pão e tinham, inclusive, um forneiro ao seu serviço. “O arroz só era consumido nos dias de festa, durante o século XVII. Apenas no século seguinte se tornaria quotidiano”, explica Anabela Ramos. Daí que o pão fosse presença regular nas suas refeições, como acompanhamento do peixe (a pescada era a espécie mais consumida em Tibães) ou da carne: a vaca e o porco eram ingeridos mais comummente, e o cabrito, o leitão e o peru, só nos dias de festa.

Em Setembro, o workshop desta iniciativa do Grupo de Amigos do Mosteiro de Tibães será orientado por Célia Pais e Judite Almeida, professoras da Universidade do Minho, que têm feito trabalho de investigação sobre os micróbios que ajudam a fazer o pão na região, em particular as broas de milho.

Depois do calor do forno, a Primavera do próximo ano trará aos participantes neste programa a frescura do ar livre: a proposta para Março de 2017 será uma incursão pela cerca do mosteiro, orientada pela investigadora da Universidade de Lisboa Dalila Espírito Santo, à procura de plantas silvestres comestíveis, como as urtigas ou as beldroegas, que depois serão preparadas e provadas na cozinha da hospedaria de Tibães.

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