Há 20 anos que a dança de Russell Maliphant é feita de luz

Até 11 de Fevereiro, Guimarães acolhe mais uma edição do GUIdance. Na abertura, a estreia portuguesa do britânico Russell Maliphant, com um programa em que celebra duas décadas a fundir movimento e luz na companhia de Michael Hulls.

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Conceal/Reveal é a estreia da Russell Maliphant Company em Portugal DR
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Speak Low if You Speak Love, de Wim Vandekeybus, inicia no GUIdance uma digressão portuguesa com várias datas DANNY WILLEMS

O desenho de luz é quase sempre um elemento final na construção de um espectáculo. Na maior parte das vezes, o “desenhador” é chamado à última hora, trabalha sobre uma obra praticamente fechada e compete-lhe acrescentar, sublinhar ou esconder algo que já existe. Não no caso de Russell Maliphant e Michael Hulls. Depois de o coreógrafo e o luminotécnico se terem conhecido num projecto de dança (Spatial Decay) dirigido por Laurie Booth, decidiram alterar o método de trabalho e acordaram fazer nascer uma coreografia da relação inicial entre movimento e luz. Em vez da peça prevista, criaram dezenas delas e em 2015, passados 20 anos de parceria, montaram um programa que celebra essa relação artística. Chama-se Conceal/Reveal ("esconder/revelar"), compõe-se de uma coreografia emblemática da dupla (Two X Three) e duas criações novas (both, and e Piece Nº43), e é o espectáculo de abertura do GUIdance – Festival Internacional de Dança de Guimarães, esta quinta-feira, no Centro Cultural Vila Flor.

A estreia em Portugal de Maliphant, um dos mais prestigiados coreógrafos britânicos da actualidade – o Daily Express carimbou-o com o epíteto “o mais importante criador de dança moderna britânico” dos nossos dias –, traz consigo esse longo rasto de uma colaboração que começou por querer alterar apenas um dado na construção de um espectáculo e se desenvolveu em toda uma linguagem inconfundível. “O nosso objectivo”, diz Maliphant em entrevista ao PÚBLICO, “foi e tem sido sempre combinar a coreografia do corpo e a coreografia da luz para criar um todo simbiótico, em que ambos os elementos possam atingir o seu máximo potencial em conjunto, acompanhados da partitura musical”. A diferença é que a música só entra em cena quando os corpos já se insinuam e deixam mostrar no meio de sombras e de focos tão cuidadosamente manipulados que deles se desprende uma poesia dos gestos muito singular.

Há uma certa aura de revelação na obra de Maliphant que foi descoberta quase por acidente enquanto trabalhavam ainda em Spatial Decay. À medida que improvisavam em simultâneo, os dois foram percebendo que havia uma reciprocidade na forma como se alimentavam e interferiam nas ideias um do outro, atalhando por um caminho quase virgem em matéria de dança. Desde então, “a improvisação é usada no processo para clarificar as fronteiras do material ou para explorar a relação dinâmica entre movimento e luz”.

Conceal/Reveal transporta a história da dupla através da revisitação de Two X Three, uma criação fundamental no trabalho de Maliphant e Hulls, uma vez que foi estreada em 2003 mas contém, em si mesma, uma relação com o passado e com os primeiros passos do trabalho a dois, materializada no regresso ao solo Two (1997). “Este trio”, esclarece o coreógrafo, “foi a primeira vez que usei material pré-existente e o retrabalhei para sublinhar relações através do material de cânone, contraste e uníssono.”

Reformas sabotadas

Depois de ter sido intérprete das companhias DV8 Physical Theatre e da Michael Clark Company, Russell Maliphant fundou a sua estrutura em 1996, interessado em poder desenvolver uma obra criada para o seu próprio corpo de bailarinos. Rapidamente se impôs como um dos nomes fundamentais da dança britânica (nascido em Otava, Canadá, todo o seu percurso artístico foi construído a partir de Inglaterra). Em 2003, com Sylvie Guillem, deu início à outra grande parceria da sua carreira, ao criar a peça Broken Fall para a bailarina e dois outros intérpretes do Royal Ballet. “O vocabulário que foi possível explorar era inacreditavelmente libertador devido às suas capacidades extraordinárias”, recorda Maliphant. Pouco depois, Guillem conseguiria resgatar o coreógrafo à sua reforma do palco e convencê-lo a criar um dueto para os dois, Push, que se tornaria uma das obras mais celebradas de Maliphant e torná-lo-ia uma estrela da dança contemporânea, com a digressão da peça a prolongar-se por dez anos. “Dei por mim a apresentar a minha obra em salas muito maiores do que aquilo a que estava habituado na altura, para públicos menos habituados a assistir a dança contemporânea do que o público para o qual tinha dançado na década anterior”, recorda desse período.

A história terá causado um tal impacto emocional em Maliphant que, para Conceal/Reveal, o coreógrafo resolveu criar um solo, both, and, para a sua mulher, a bailarina Dana Fouras. Fouras tinha deixado os palcos e a companhia (era ela a intérprete original de Two) dez anos antes, para se dedicar à vida doméstica e aos filhos do casal. Depois de Guillem interromper a sua reforma, também Russell não resistiu a sabotar os planos de sossego e de recato, desta vez dentro do seu próprio lar.

É também essa a história que o GUIdance conta na noite de abertura da sua edição de 2017. Depois, o festival estende-se até 11 de Fevereiro, contando com criações de João dos Santos Martins e Ciryaque Villemaux, Jonas & Lander ou Ana Jezabel e António Torres. Em destaque estarão Tânia Carvalho, com a estreia do solo Captado pela Intuição (sábado, 4) e a reposição de De Mim Não Posso Fugir, Paciência! (8), assim como o regresso a Guimarães de Jefta van Dinther, desta vez na companhia de Thiago Granato, com a estreia nacional de This Is Concrete (10). O espectáculo de encerramento estará a cargo de Wim Vandekeybus, com Speak Low If You Speak Love, primeira data de uma digressão portuguesa do coreógrafo belga que concluirá a apresentação internacional da peça. Pelo meio, no dia 9, também o bailarino e coreógrafo Luís Guerra apresentará A Tundra.

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