Gonçalo Waddington, um curioso insaciável

O Nosso Desporto Preferido – Futuro Distante é a segunda parte da tetralogia em que Gonçalo Waddington se inspira em Huxley e Houellebecq para se perguntar em termos impudicos para onde caminha o mundo e o papel que a ciência desempenhará num novo paradigma civilizacional.

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O Nosso Desporto Preferido — Futuro Distante: em cena no São Luiz, Lisboa, de 27 de Abril a 6 de Maio, e no São João, Porto, de 18 a 28 de Maio Miguel Manso

“Tempos houve em que se matava por dá cá aquela palha / Agora ninguém agita, ninguém protesta, ninguém ralha / Agora ninguém rouba, ninguém caga, ninguém malha / Agora ninguém cega, ninguém insulta, ninguém batalha / Agora ninguém chupa, ninguém fode, ninguém esgalha.” Passaram-se cem mil anos desde que Michel, visionário, narcisista e desmedido líder de um simpósio de cientistas, pôs em marcha uma extraordinária experiência destinada a tornar a vida humana cada vez mais simples, sem ter de desesperar com os seus apetites sexuais ou alimentares, libertando-a para se cumprir em seres destinados a sublimes existências destinadas ao intelecto e à excelência atlética. E foi ao estado de perfeição acima descrito pelo Coro da Humanidade na segunda parte da tetralogia O Nosso Desporto Preferido que se chegou. Passados cem mil anos, parece que as pessoas, depois de levarem à letra as determinações de Michel – como se de uma bíblia se tratasse – não estão assim tão felizes nas suas esvaziadas vidas solitárias, melancólicas, entediadas e sem envolvimento sexual.

Partindo de um universo assumidamente inspirado por Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, As Partículas Elementares e A Possibilidade de Uma Ilha, de Michel Houellebecq – o Michel cientista, criador desta espécie reinventada e melhorada deve o seu nome ao escritor francês –, Gonçalo Waddington criou uma longa obra em quatro partes que se divide em outros tantos tempos históricos. Depois do Presente, chegamos ao Futuro Distante. Esta investigação ao futuro da espécie a partir de um ideal obsessivo em que as pessoas já nem se tocam, é consequência de uma curiosidade natural de Gonçalo Waddington pela literatura de divulgação científica, que lê por puro prazer.

De certa forma, pode dizer-se que a vida autoral do actor é um mero acidente. Tendo encomendado a um escritor português a criação de uma peça que, aos poucos, se foi tornando crucial para Waddington que teria de impossivelmente adaptar para o palco a obra gigantesca de Marcel Proust Em Busca do Tempo Perdido, a tarefa terá parecido tão pouco exequível ao escritor (que permanecerá anónimo) que, após várias conversas, este sugeriu que fosse o próprio actor a escrevê-la. Daí nasceu Albertine – O Continente Celeste, texto infectado já pelas suas leituras de física e astrofísica, e em que extraía duas personagens das mais de 3000 páginas de Proust e nelas mergulhava seguindo o exemplo do autor francês, dizia então, explorando essas personagens até às micropartículas.

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Partindo de um universo inspirado por Admirável Mundo Novo, de Huxley, As Partículas Elementares e A Possibilidade de Uma Ilha, de Houellebecq Gonçalo Waddington criou uma longa obra em quatro partes Miguel Manso

Não foi decisivo, na verdade, que as temáticas abordadas por Waddington sejam pouco frequentes em palcos de teatro. Depois de ter encenado algumas peças de outros autores, “em que havia ainda qualquer coisa de insatisfação”, a vontade de escrever começou a anunciar-se com uma clareza crescente. “Neste momento, ao criar de raiz um texto e encená-lo em seguida, sinto que é mais fácil. Não estou a dizer que o resultado é melhor, mas sinto-me no meu elemento. No entanto, primeiro está essa vontade de escrever coisas para serem ditas no palco – esse é o motor. Só depois vou procurar o que quero dizer. Claro que ao estar rodeado de divulgação científica, ensaio, filosofia ou qualquer outra coisa, isso alimentar-me-á sempre e serei sempre permeável a que essas ideias surjam.”

Uma vida sem sal

A natureza densa da escrita de Gonçalo Waddington tornava Albertine um espectáculo em que não era fácil entrar. Se essa densidade não é abandonada por completo nos primeiros dois momentos da tetralogia, o tom lúdico que Gonçalo agora afecta à linguagem oferece uma outra riqueza e facilita a aproximação a esta intrincada narrativa exploratória da evolução civilizacional, na genética e na biologia molecular. Parece complicado mas explica-se de forma simples. Se na primeira parte Michel se apresenta como o líder de um projecto que pretende livrar a Humanidade das necessidades físicas, tornando desnecessários a alimentação e os aparelhos digestivo e reprodutor, agora, na segunda parte, é chamado ao futuro pelo Coro da Humanidade para que regresse ao momento detonador dessa mudança e repare uma existência anódina, esvaziada de todo e qualquer entusiasmo. É-lhe pedido que pare a investigação antes de desencadear uma vida sem sal.

A Humanidade fala como coro porque Waddington, que adopta um diferente modelo de escrita para cada tomo da tetralogia, seguiu aqui os mandamentos da tragédia clássica grega – em termos de estrutura, porque o tom geral acerca-se mais da comédia, tão inteligente quanto desbragadamente impudica, apresentada sempre em rima. Esse modelo insinua também que, na reciclagem permanente da História, o futuro distante pode muito bem ser uma repetição da Antiguidade Clássica. Mas chamado, então, a testemunhar o resultado da sua experiência, Michel-Prometeu é elevado a Criador a quem são apresentadas reclamações. Se o benfazejo futuro trouxe os “seres ultra-atléticos, com exímios dotes intelectuais, quase proféticos” que Michel tinha sonhado, estes apenas se sentem uma mistela de “humanos com cães, polvos e demais batidos genéticos” degenerados em “seres escanifobéticos”.

Ao pedir que Michel reescreva a primeira peça, o Coro da Humanidade brinca com a comparações entre criação artística e criação científica – “a imaginação trabalha sempre a favor da investigação científica e artística, daí essa ponte”, justifica Waddington – mas este confronto do criador com a criação serve sobretudo para lançar um braço-de-ferro entre a glória individual e o destino colectivo votado pelo seu invento. Waddington cita o caso da astrofísica Jocelyn Bell Burnell, descobridora do pulsar, ignorada na atribuição do Prémio Nobel da Física, em 1974, que distinguia a descoberta mas escolheu premiar o seu supervisor e um colega investigador envolvidos no mesmo projecto de pesquisa, negando-lhe a glória. A questão aqui, ainda assim, é a ética por detrás da decisão a tomar perante as provas das consequências para o mundo de cada nova investigação. Não deveria a prova futura da catástrofe ser razão suficiente para impedir em marcha qualquer revolução na História da Humanidade?

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Negociações entre incapazes

A presença do coro, que nas tragédias gregas cumpria a função de comentar a acção mas sem ter uma intervenção directa, sugere inevitavelmente em O Nosso Desporto Preferido – Futuro Distante, em cena no Teatro São Luiz, Lisboa, de 27 de Abril a 6 de Maio, e no São João, Porto, de 18 a 28 de Maio, um papel passivo que destapa uma certa demissão de responsabilidade. A opção de mandar chamar o criador – enquanto em Hades, submundo resgatado à mitologia grega, o adivinhador escatológico vai-se esvaindo em profecias – para junto dele reclamar, suplicar, alertar ou avisar e não tomar em mãos uma verdadeira revolução traça um quadro geral da manutenção no poder de figuras deificadas e da desistência que, com frequência, adormece os colectivos. “Há um coro que é mais honesto consigo próprio em relação à sua condição – ‘somos o elemento passivo aqui, podemos suplicar’ –, mas o Michel, visto como líder, é tão ou mais passivo porque não tem jeito nenhum para a liderança.” Ficam por isso ambos os lados na expectativa da tomada de posição do outro, uma espécie de negociação entre duas entidades incapazes que, para Waddington, se constrói também a partir “daquela ideia de contemplador e proustiana que passa por antecipar muito uma coisa”. O resultado é algo que poderia pendurar-se num cabide de comédias de enganos.

Nas leituras de investigação que levaram à ideia nuclear de O Nosso Desporto Preferido, Gonçalo Waddington cruzou-se com a escala de Kardashev, astrofísico russo que, em 1964, definiu uma escala de medição do desenvolvimento tecnológico de uma civilização a partir do seu consumo energético – tipo 1, no caso de ser aproveitada toda a energia potencial de um planeta; tipo 2, se respeitar à energia de uma estrela; tipo 3, se alcançar toda a energia de uma galáxia. Essa escala teórica coloca a Terra na categoria tipo 0. “Acho que é uma explicação que faz muito sentido mas muita gente pensa que é uma grande aldrabice”, comenta o autor. “Percebo que pensem isso, da mesma maneira que parecia aldrabice quando primeiro se falou na relatividade restrita e na relatividade geral. Tal como era aldrabice alguém em 1800 e picos, no meio de nenhures, dizer a outra pessoa que podia apanhar uma coisa que andava sobre um caminho-de-ferro e demorar um dia a fazer uma viagem que antes demorava um mês.”

Para Gonçalo, a turbulência em que hoje vivemos deve-se, em parte, a um crítico período de transição para uma civilização tipo 1, definida também pela existência de uma língua comum – “diga-se o que se disser, o inglês é a língua que se fala em todo mundo”, comenta –, um meio de comunicação comum – “com melhor ou pior sinal, há internet no Senegal, na Gronelância, na China ou em Portugal”, acrescenta – e um pensamento científico e multicultural. “Só que estamos na zona de transição, que dizem poder destruir uma civilização”, acredita, apontando para os opositores da multietnicidade e da globalização como “os Trumps desta vida e o Estado Islâmico” como exemplos de obstáculos sérios a esta passagem para um outro paradigma. Se a Terra resistir a estes conflitos, os indícios estão aí.

A mesma curiosidade que faz com que Gonçalo estude os avanços tecnológicos, que agende conversas com estudiosos do Laboratório de Investigação de Partículas e que tenha a certeza que daqui por uns milhares de anos todos os seres humanos terão órgãos biónicos, essa mesma curiosidade levou-o a ter aulas de badmington e a tornar-se fanático do desporto a pretexto da escrita de O Nosso Desporto Preferido. Reconhecendo que “o desporto preferido” é o sexo, a peça propõe a sua substituição pelo badmington. Gonçalo encanta-se com “o som do volante a bater na raquete” e “a rapidez de reflexos e a movimentação dos pés que é coreográfica”. Pareceu-lhe também um desporto muito teatral e que partilha qualidades essenciais para um bom espectáculo: é ágil, delicado, elegante e enérgico.

Daqui partir-se-á até ao futuro próximo, que é o mesmo que dizer que se recuará até ao passado a partir do futuro distante. Mas isso só em 2019. Até lá, Gonçalo Waddington avançará para a realização da sua primeira longa-metragem, produzida por O Som e a Fúria, porque, na verdade, não sabe viver em sossego.

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