Godot na Arábia

Inteligente, elegantemente escrito, e por vezes também divertido, Um Holograma Para o Rei - a adaptação cinematográfica, com Tom Hanks, chega na próxima semana - é um romance sobre a imponderabilidade da vida e o novo “sonho americano”.

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Um Holograma Para o Rei não cumpre o fulgor e brilhantismo que Dave Eggers promete em todos os livros mas que ainda não atingiu Shawn Grant

Dave Eggers (Boston, 1970) foi até há uns anos um dos “meninos de ouro” da nova literatura norte-americana, em conjunto com o imaginativo Jonathan Safran Foer e o eclético Michael Chabon. Jornalista de formação, fundador e editor da revista literária de culto, a McSweeney’s, estreou-se na literatura em 2000 com um romance que de imediato o catapultou para as preferências dos leitores e dos críticos, Uma Obra Enternecedora de Assombroso Génio (Quetzal, 2012), uma espécie de livro de memórias sobre os trágicos acontecimentos que foram a morte dos seus pais, com poucas semanas de diferença, à mistura com um pouco de ficção, e que chegou a ser finalista do Pulitzer Prize.

Escritor de uma versatilidade admirável, tem dividido o seu talento por livros de memórias como O Sítio das Coisas Selvagens (Quetzal, 2009), histórias orais passadas à escrita, O Que é o Quê (Casa das Letras, 2009) — onde conta a história de um refugiado sudanês que conseguiu chegar aos Estados Unidos e que, curiosamente, há cerca de dois anos se tornou ministro da educação no Sudão — ou ainda livros baseados em experiências surpreendentes e acontecimentos verídicos, escritos com o propósito de defender uma causa — em particular a dos direitos humanos, em Zeitoun (Quetzal, 2011), sobre os mecanismos kafkianos da justiça americana, a propósito da detenção de um habitante de Nova Orleães que se recusou deixar a cidade durante os dias do furacão Katrina.

Um Holograma Para o Rei — recentemente adaptado ao cinema, tendo Tom Hanks como protagonista — é o seu primeiro “verdadeiro” romance desde que em 2002 publicou Conhecereis a Nossa Velocidade! (Quetzal, 2011). Nele nos conta a história de Alan Clay, um homem na casa dos 50 anos de idade, divorciado, bebe em demasia, tem uma filha a estudar numa universidade cara e cujas propinas do próximo semestre não vai conseguir pagar, e tem ainda muitas dívidas devido a negócios mal sucedidos, a decisões de curto alcance e idiotas que tomou. “Alan passara umas dezenas de anos [no negócio] nas bicicletas, depois disso fizera uma dúzia de coisas diferentes, consultadoria, ajudar empresas a tornarem-se competitivas com recurso a uma eficiência impiedosa, robótica, gestão de fluxos, coisas assim. E, no entanto, ano após ano, havia menos trabalho para pessoas como ele. O fabrico em solo americano deixara de interessar.”

É o final de Maio de 2010, a América está ameaçada pela recessão económica, e Alan Clay (em plena crise existencial) acabou de chegar a Jidá, na Arábia Saudita, para apresentar ao Rei Abdullah “um sistema de teleconferência por holograma” na King Abdullah Economic City, uma cidade que é uma espécie de miragem no deserto, no vazio. Se o conseguir convencer, o rei concederá à empresa para a qual Alan trabalha o contrato de TI, e a sua comissão, “um número a meio dos seis digítos”, resolverá todos os problemas que o afligem.

Na costa do Mar Vermelho, num quarto de hotel, entre copos e longas e melancólicas cartas à filha, Alan espera que o rei apareça para assistir à apresentação do tal sistema holográfico de videoconferência que ele tem de fazer. A personagem (que no fundo é um vendedor, à maneira de outras que enchem alguns dos romances clássicos americanos) é uma espécie de Godot, debatendo-se no vazio da vida, esperando por algo que mude e resolva a sua vida — note-se que Dave Eggers abre o livro com uma “premonitória” epígrafe de Beckett, “Não é todos os dias que somos necessários”.

Um Holograma Para o Rei é um romance sobre a imponderabilidade da vida, mas sobretudo sobre os malefícios da globalização; apesar de não ser abertamente político, não deixa de recorrer à fina ironia para deixar umas notas: “Os chineses já estavam a fazer sapatilhas na Nigéria”. Inteligente, elegantemente escrito, e por vezes também divertido, parece por vezes querer explorar a ideia do “sonho americano”, mas agora realizado fora das fronteiras: um americano que a América deixou que falisse, procura o seu sonho fora de portas. Pelo meio há toda uma galeria de personagens, mais ou menos baças, que da mesma maneira que Alan, parecem tentar juntar os cacos das suas vidas para as tentarem recriar. Mesmo assim, Um Holograma Para o Rei não consegue cumprir o fulgor e brilhantismo que Dave Eggers, de certa forma, promete em todos os livros mas que ainda não atingiu.

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