García Lorca: 80 anos depois, o mistério da morte continua

O assassinato do poeta espanhol, em 1936, será agora investigado por uma juíza argentina especializada na violação de direitos humanos durante o franquismo. Novas escavações começam em Setembro.

Fotogaleria
Federico García Lorca DR
Fotogaleria
Federico García Lorca DR

“Só o mistério nos faz viver. Só o mistério”, escreveu Federico García Lorca. No ano em que em que se cumprem 80 anos desde o seu assassinato por forças franquistas, na madrugada de 18 de Agosto de 1936, o mistério García Lorca continua por resolver e está agora nas mãos da juíza argentina María Romilda Sevini. A magistrada, que lida há anos com casos de violação dos direitos humanos durante o franquismo, deverá tomar conta da pasta em Abril e, segundo fonte judicial disse à Reuters, “já pediu aos tribunais de Madrid que providenciem os documentos do caso”. Paralamente, a terceira fase de escavações para encontrar os seus restos mortais terá início a 19 de Setembro, em Alfacar, Espanha.

Em 2015, foi encontrado um relatório da Comando Superior da Polícia de Granada, datado de 1965, que revelava que Federico García Lorca teria sido assassinado por ser “socialista”, “maçom” e adepto de “práticas homossexuais” (classificadas no relatório como uma “aberração"). Este foi o documento usado pela Associação pela Recuperação da Memória Histórica para obter a aprovação da juíza.

As escavações, que serão dirigidas pelo arqueólogo Javier Navarro e pelo historiador Miguel Caballero, têm como objectivo encontrar os restos mortais de Lorca em três poços de água que pertenciam a uma antiga fábrica de panos. Em 1936, estas estruturas terão sido usadas como valas comuns para fuzilados. Será a terceira tentativa para resolver o enigma da morte do autor, depois das anteriores campanhas de escavações, sem resultados, conduzidas em 2009 em Fuente Grande e em 2012 em Peñon Colorado.

A associação cultural Regreso con Honor, presidida por Navarro, é a impulsionadora principal da nova investigação, que custará um total de 36 mil euros. Os trabalhos serão financiados por fundos privados, mas a organização ainda precisa de 12 mil euros e de uma escavadora do Governo, que já foi cedida nas escavações anteriores.

Em declarações ao jornal espanhol El Confidencial, Javier Navarro refere que a “busca será mais precisa porque o terreno original sofreu grandes alterações”, uma vez que já foi usado como pista de motocross e campo de futebol e acolheu a ampliação de uma casa de turismo rural. A área onde poderiam estar os restos do poeta vai restringir-se mais 40 metros em relação ao local da anterior busca.

Durante o processo de preparação das novas escavações, catedráticos das universidades de Saragoça, Politécnica de Valência e Tucumán (na Argentina) desenvolveram mais um estudo sobre o caso e foram analisadas fotografias aéreas do Arquivo Geral Militar de Ávila, da Assembleia de Granada e de hemerotecas. Foram, ainda, realizados estudos geomorfológicos com um radar que permitiu localizar três anomalias no subsolo a uma altura coincidente com o nível original do terreno em 1936.

O biógrafo Ian Gibson diz à agência noticiosa espanhola EFE que “deveria ser uma questão de Estado averiguar onde [o poeta] está enterrado” e discorda, tal como a família de Lorca, de uma possível exumação. O certo é que ninguém sabe onde está realmente sepultado o poeta espanhol e que continuam a circular várias teorias, como a de que o franquismo o terá desenterrado para evitar que a sepultura se tornasse um lugar de propaganda e peregrinação; também há quem diga que foi a própria família que o fez.

Caracterizado como um “ser nascido para a liberdade” pelo poeta espanhol Vicente Alexandre, Federico García Lorca levava alegria onde quer que passasse, apesar da sua obra por vezes negra, testemunharam vários seus contemporâneos. O escritor chileno Pablo Neruda disse dele que “trazia a felicidade”; o poeta espanhol Rafael Alberti que iluminava cada divisão em que entrava. “Não há nada tão vivo como uma recordação”, escreveu Lorca de forma quase profética.

Espanha tinha acabado de mergulhar na Guerra Civil (1936-1939) quando García Lorca foi detido, no final de Julho. Regressara de Madrid, onde residia, na sequência de duas buscas à sua casa, e antes do levantamento militar franquista. Apesar de ter-se escondido na casa dos irmãos Rosales Camacho (antigos falangistas e seus amigos), a sua sentença já tinha sido decidida pelo general Queipo de Llano, que terá ordenado “Café, dêem-lhe muito café”, linguagem de código para fuzilamento. A casa foi cercada por milícias e tropas de assalto. “Federico representava tudo o que eles odiavam – era poeta, um artista popular, um pensador brilhante e homossexual”, afirma o encenador espanhol Lluís Pasqual, também citado pelo El Confidencial.

Dias após a sua detenção, o poeta e dramaturgo foi retirado do quartel da Guarda Civil “por forças dependentes do mesmo” e levado de carro para Viznar, em Granada. Segundo o relatório, os seus restos repousam em Fuente Grande, num lugar “muito difícil de localizar”. A investigação do Governo da Comunidade Autónoma da Andaluzia conclui que aí perto, na ravina de Viznar, estarão enterradas entre três a quatro mil pessoas, todas vítimas do fascismo: “Os assassinatos dos primeiros meses foram fuzilamentos descontrolados, de tal forma que não se inscreveram os nomes dos mortos no registo civil.”

“Da mesma forma que não me preocupei com nascer, também não me preocupo com a morte”, escreveu Lorca. A morte viria a encontrá-lo há 80 anos e, ao que parece, o poeta teria no bolso um bilhete para viajar para o México. Ficou na sua Granada, entre Alfacar e Viznar, sem sepultura conhecida mas com uma obra que ainda hoje se mantém viva e que, a 1 de Janeiro do próximo ano, se tornará domínio público.

Texto editado por Inês Nadais

Sugerir correcção
Ler 2 comentários