Freeman’s, a literatura comprometida com o seu tempo

Lydia Davis, Dave Eggers, Adonis, Herta Müller e Juan Gabriel Vasquez integram as antologias da Freeman’s. É a nova revista literária fundada por John Freeman, ex-director da Granta. O terceiro número acabada de sair nos Estados Unidos, e trata da Casa.

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John Freeman em Lisboa, em 2013 Enric Vives-Rubio
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Em criança, um navio levou-o, e a casa foi-se tornando um lugar imaginário; tanto mais imaginário quanto o tempo o foi afastando dela. Num poema muito breve, Adonis, o poeta sírio de 87 anos, de quem há muito se fala como candidato ao Nobel, não refere o nome desse lugar original. Fixa-se antes numa ideia de alquimia para designar aquilo a que se chama casa. A casa com tecto, a casa conforto, a casa de afectos, a casa enquanto espaço geográfico amplo, a casa como desejo, mito, interdito: vista a partir do interior ou do exílio, da pausa, do movimento; lugar eterno, símbolo de estabilidade ou local de passagem; casa de vida, de morte, de doença, de família.

A casa é o tema do terceiro número da revista Freeman's, onde Adonis escreve ao lado de nomes como o da Nobel alemã Herta Müller, a haitiana Edwidge Danticat, ou a francesa Marie Darrieussecq, num conjunto de 320 páginas que pretende ser uma espécie de “liturgia da casa”, e que mais do que um elogio é quase uma devoção ao tema.

Fundada há um ano pelo ex-director da Granta, o jornalista e escritor americano John Freeman, a Freeman’s surge no espaço dedicado às revistas literárias que procuram uma intervenção social e política. Além de ética e estética. "Quando surgiu a ideia de fazer uma revista, eu queria dizer muito claramente qual era a sua origem, e dei-lhe o meu nome. Este é o meu gosto e esta é a minha selecção. Os escritores sem os quais não posso viver", diz John Freeman ao PÚBLICO, no momento em que o terceiro número acaba  de ser lançado nos Estados Unidos. "Queria publicar escritores que estivessem envolvidos ética e emocionalmente com o mundo através do seu trabalho", acrescenta, sublinhando a valorização da perspectiva pessoal, subjectiva, do trabalho de cada autor convidado a participar. 

Com publicação semestral, a estreia da revista fez-se na Primavera de 2016 com contos de Louise Erdrich, Kamila Shamsie, Sjón, Colum e McCann, David Mitchell e Daniel Galera; textos de Haruki Murakami, Dave Eggers e Lydia Davis. O tema era Arrival, e anunciava-se como a revista com o melhor da nova escrita.  Ficção, não-ficção, poesia, tudo textos inéditos que representassem o momento actual e ajudassem à reflexão.

No Outono, saía Family, mais de 300 páginas assinadas por autores como Patrick Modiano, Sandra Cisneros, Cesar Aira ou Mo Yan. Casa chega agora, e quer sedimentar uma publicação que muitos vêem como parente próxima da Granta, mas com uma marca pessoal mais vincada: a do seu fundador. “Há alguma coisa que não seja pessoal? Não quero com isto dizer que as coisas importantes sejam por natureza sobre o 'eu', ou sobre identidade, mas ela está lá”, diz John Freeman, um pouco em reacção ao mundo digital que “está constantemente a assaltar-nos pessoalmente”, ao mesmo tempo em que há o anseio pelo local. A ideia de localidade, o lugar onde se vive, a comunidade, a casa, o limite. Foi isto que o levou, não apenas ao tema da terceira edição, mas que esteve também na génese da própria revista.

Tomando de empréstimo o título de um conto de Raymond Carver, Where Are They Calling From, Freeman quer mergulhar nessa subjectividade a que não é alheio o lugar de onde se vem. Geográfico, político, familiar, ideológico. “Acredito que esse sentimento surge porque é através do que nos rodeia e do que fazemos que nos situamos mais intimamente como criaturas éticas. Rebecca Solnit escreveu maravilhosamente sobre isso”, refere. E chama a atenção: “Vai notar que muitos dos ensaios mais longos não são memórias, mas o escritor está lá presente. Como na peça de Lydia Davis sobre como aprender norueguês; ou Marlon [James] a escrever sobre a sua mãe; ou ainda  Aminatta Forna a reflectir acerca do legado da escravidão na Serra Leoa e em Washington DC. A minha esperança é que estas páginas convidem o leitor a ser um cosmopolita no melhor sentido da expressão, a observar como as pessoas escolhem e no que acreditam.”

Publicada pela Grove Press, e com um preço de capa de 16 dólares (14,6 euros), a Freeman’s é editada em inglês, e traz a cada semestre uma antologia de textos de autores de todo o mundo, novos ou prestigiados, com um olhar que quer fugir a clichés e a tratamentos simplistas de temas com ligação à actualidade.

Quando no terceiro número John Freeman escolhe falar da Casa, tem implícito o problema dos refugiados, dos constrangimentos económicos que ter um casa implica, dos sem-abrigo, da mobilidade cada vez maior das populações, dos exilados e deslocados, dos migrantes, do conceito de fronteira. “As casas das pessoas têm sido instáveis ao longo de décadas, de séculos. Diria que a aberração na história humana é o lar ser uma coisa estável e ainda hoje a maioria dos projectos de cultura ocidental seguirem essa narrativa da casa estável”, declara nesta entrevista em que explica também que quis convidar escritores de todo o mundo para contar histórias “que mostram os diferentes significados de casa”.

Pode ser uma “casa em pausa, como no caso de Edwidge Danticat, que esperou no Haiti que os seus pais a levassem para os Estados Unidos; ou casas que não voltarão a existir, como no caso do poeta sírio Adonis”, nota, referindo que lhe importa, neste projecto, a diversidade. “Muitas vezes sinto que há uma distância muito grande entre como a vida é vivida e como ela é reflectida na cultura literária.”

Desde que a revista foi lançada, John Freeman tem andado quase em permanente tournée de promoção. Tanto nos Estados Unidos como nalguns países da Europa. Colocar no mercado e afirmar uma revista literária num momento de crise da imprensa “não tem sido fácil”, confessa. Mas a experiência tem-se revelado "surpreendente". “As pessoas querem ler literatura na imprensa, que amplie e aprofunde o contexto.” 

O terceiro número parece solidificar o projecto ambicioso que os dois anteriores anunciaram. Depois de escrever sobre o que tem sido para ele uma casa, e como tem vivido essa experiência ao longo dos anos, John Freeman refere: “Ultimamente, a casa está no corpo e na voz de muitos escritores”. Por exemplo, na voz da romancista sino-britânica Xiaolu Guo. Na história que ela conta há uma pergunta que se repete a cada encontro: "'De onde vens?' 'De uma aldeia chamada Shitang', onde os pescadores comem sempre primeiro os olhos dos peixe”.

A casa de John Freeman

"De onde vens?" Esta pergunta também é muitas vezes feita a John Freeman, o crítico literário que em 2013 se demitiu da direcção da revista literária Granta para agora fundar a sua própria publicação. Costuma dizer que vem da Califórnia. Não é tão simples. Nasceu em Cleveland, Ohio, em 1974, mas é um dos muitos americanos que cresceu a mover-se na paisagem vasta do seu país, e só viria a chamar casa ao lugar para onde foi viver depois de atravessar o país de carro, com a família: Sacramento, na Califórnia. Por isso, quando lhe perguntam de onde é, diz que é daí. E é dessa raiz que nasceu a sua revista, Freeman’s.

“Venho do Ocidente nos EUA. Isso leva a um monte de associações cliché. Claire Vaye Watkins, que aparece na segunda edição, escreveu de forma muito divertida sobre este tópico. Auto-suficiência, jeans, tabaco, grandes céus, vozes vibrantes... Mas há um lugar real que é mais do que essas projecções. Para mim, tem a ver com a paisagem e com a água, que têm sidos maltratadas e violentadas; quão pequenos os tremores de terra nos podem fazer sentir, e como isso impõe uma espécie de robustez. Penso que a Freeman’s recupera esses valores, com uma estética visual – sem veicular expressões banais, ideias superficiais –, que seja premente, sólida e não cínica", diz.

Uma espécie de retrato de carácter, um modelo ao qual o seu nome surge muito associado. “Serei um narcisista altaneiro? Deus, espero que não. Praticamente todas as grandes editoras americanas têm o nome dos seus fundadores, e espero através da revista poder chegar a um número de leitores alargado, e comprometidos, que reconheçam a decência humana básica e queiram ler para complexificar as suas vidas, em vez de as simplificar. E também a quem quer ler por prazer. Mesmo as coisas mais terríveis, quando ditas de forma verdadeira, conseguem ser de grande beleza, por isso mesmo, por serem verdadeiras. Pode haver alegria nisso: por finalmente ler uma coisa dita verdadeiramente.”

 

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