Fogo que arde sem se ver

Uma relação conjugal a arder, primeiro imperceptivelmente, depois em sucessivas explosões de uma violência sem nome nem origem: O Incêndio.

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O filme deixa claro que Juan Schnitman é uma cineasta a ter em atenção

Já alguém escreveu, com a anuência do realizador Juan Schnitman, que O Incêndio é como se alguém pegasse nas Cenas da Vida Conjugal de Ingmar Bergman e atirasse lá para dentro gasolina e um fósforo a arder. Em rigor, é uma imagem demasiado lisonjeira para o filme de Schnitman, porque com gasolina ou sem ela a Vida Conjugal de Bergman está noutra galáxia. Mas dá para perceber a ideia subjacente a este “incêndio” metafórico e invisível. Uma relação conjugal a arder, primeiro imperceptivelmente, depois em sucessivas explosões de uma violência sem nome nem origem, e provavelmente sem sequer imagem para além da alegoria.

Alegoria que, novamente em rigor, é expressão redutora para o filme de Schnitman: a sua história de um casal preso numa casa atravancada e com toda a tralha empacotada (a casa nova para onde se vão mudar só está disponível um dia depois do previsto, têm de viver 24 horas extras num apartamento tornado “terra de ninguém”) não se confunde com um modo alegórico e é pelo contrário extremamente física (a tensão criada naquele espaço e na maneira como Schnitman nele enquadra as personagens, a relação com os exteriores, de onde nunca vem nada de bom) e extremamente carnal (no sentido mais preciso do termo, aquele que nasce de uma energia gerada através dos corpos dos actores e da sua coexistência num espaço que os atira um contra o outro).

Schnitman, ele próprio, falou mais em Cassavetes, reclamando a inspiração dos seus ensaios febris sobre a intimidade; percebe-se, mas o próprio realizador, e isto não é contraditório, será o primeiro a ter consciência de quão pouco “cassaveteano” é o seu filme – que tem muito pouco que ver com a tensão da performance e do improviso, vive de um controlo absoluto (a découpage, a câmara fixa, a montagem sempre a “ferir”), e cria uma impressão de domínio do próprio desempenho dos actores que contribui para lhes limitar os gestos, para os manietar, mais do que para os expandir. A violência pode ser expressa, em gestos e em palavras, mas é realmente (e estranhamente) evidente quando não se consubstancia em nada de concreto, quando recusa fazer dum gesto um espectáculo, quando confunde o afecto com o rancor – numa mescla que não se resolve, antes se imbrinca mais e mais, a caminho dum final que deixa todos (espectador inclusive) como se tivessem saído dum combate de boxe. Não saberíamos dizer o que El Incendio representa como olhar sobre a sociedade argentina urbana contemporânea; mas sobre o cinema argentino deixa claro que há mais para além dos habitués Lucrecia Martel &  Lisandro Alonso, e que Juan Schnitman é uma cineasta a ter em atenção.

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