Filipa e o sortilégio da Guiné

Spell Reel, longa-metragem de Filipa César, é um extraordinário documentário-ensaio sobre as memórias do cinema militante guineense.

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Colo, de Teresa Villaverde, não é a única longa-metragem portuguesa na Berlinale – mais discreta mas não menos impressionante é Spell Reel (Forum), extraordinário documentário-ensaio que marca a passagem à longa-metragem da artista multimédia Filipa César, e onde passado e presente dialogam permanentemente ao longo de hora e meia a partir dos arquivos e das memórias fílmicas da Guiné-Bissau entre 1967 e 1980. O título – Spell Reel – significa “bobina dos sortilégios”, numa referência simultânea à bobina de película mas também à ideia da evocação de memórias e espectros do passado, numa espécie de ligação directa ao solo guineense que é tornada evidente numa das mais extraordinárias imagens do filme: um gerador eléctrico que propulsiona a projecção de cinema ao ar livre e cujos cabos vagueiam pelo capim como se fossem parte natural dele.

“Temos de aprender sobre a nossa própria história para podermos ter alguma coisa para contar” é uma das frases incrustadas, de modo muito godardiano, mas também muito markeriano, nas constantes sobreposições de imagem de Spell Reel. E é propositado que assim seja, porque “a história do cinema da Guiné-Bissau esteve nas mãos de Chris Marker” e da película de 35mm que o cineasta francês trouxe aos quatro guineenses que estudaram cinema em Cuba e que andaram pelo país a registar o progresso da independência para um arquivo nacional e para memória futura. Dois deles, Flora Gomes e Sana na N’Hada, acompanharam o projecto de recuperação e digitalização possível do material rodado nesses anos e que, com a queda do regime socialista em 1980, andou em bolandas de um lado para outro. Em 2014-2015, acompanharam também o cinema ambulante que Filipa César animou, levando as imagens digitalizadas para serem projectadas nos lugares guineenses onde haviam sido filmadas.

É, então, em múltiplas dimensões que Spell Reel, resultado de seis anos de trabalho subvencionado entre a Alemanha, a França, o Reino Unido, Portugal, se joga: é ao mesmo tempo uma cápsula do tempo, um registo de um trabalho de recuperação e transmissão, um ensaio sobre a memória, as imagens e a História (e sobre o modo como elas transmitem a História), um documentário sobre o modo como um país redescobre a sua herança, um estudo sobre o cinema enquanto educador mas também enquanto revelador inesperado, um diálogo constante entre presente e passado, um confronto com fantasmas… Uma espécie de “toca de coelho” que se vai abrindo progressivamente mais, ou um corredor cujas portas dão para outros corredores, onde as imagens e os sons dialogam, comunicam, constroem, desconstroem, reconstroem.

Spell Reel não se esgota numa única visão, exige ser revisto para se conseguir apreender tudo o que nele se joga, mas marca um real passo em frente no trabalho que Filipa César tem realizado para cinema ao longo dos últimos anos – onde as suas curtas podiam ser demasiado áridas e conceptuais, Spell Reel é tudo menos um filme “de artista”, atinge uma legibilidade quase cristalina no modo como trabalha a montagem para envolver o espectador no seu sortilégio. Uma experiência apaixonante, tão apaixonante como a história que se conta por entre as imagens que lhe estão na origem. 

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