Fazenda e família

O esquema narrativo e o pretexto que o espoletou são clássicos e são quase sempre eficazes nas mãos de um escritor competente. Héctor Abad Faciolince é um escritor competente e Oculta é um romance eficaz.

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Héctor Abad Faciolince é um escritor competente e Oculta é um romance eficaz, mas não mais do que isso

A morte é sempre um bom começo. Oculta, o último romance do colombiano Héctor Abad Faciolince (Medellín, 1958), abre com o anúncio da morte da matriarca da família Ángel, na sua fazenda no interior da província de Antioquia. Antonio, um dos filhos, recebe em Nova Iorque um telefonema de uma irmã, que lhe diz que “a mãe amanheceu morta em La Oculta”. La Oculta é o nome da propriedade rural que está na posse da família há cerca de 150 anos. Seguir-se-á a história da constituição dessa propriedade e da família, contada pelos três herdeiros. O esquema narrativo e o pretexto que o espoletou são clássicos e são quase sempre eficazes nas mãos de um escritor competente. Héctor Abad Faciolince é um escritor competente e Oculta é um romance eficaz. Mas é só isso.

Os três narradores de Oculta são os irmãos Antonio, Eva e Pilar, estruturando-se o livro pela interpolação dos respectivos monólogos. Pilar, já sessentona, é a mais velha, a mais conservadora, nos costumes e nas ambições, e também, aparentemente, a mais feliz; Eva, que somou relações e ambições frustradas, é a irmã intranquila, desprendida, insatisfeita e errática; Antonio é homossexual e vive em Nova Iorque com um pintor famoso e rico, mas tem o coração e a memória na fazenda colombiana e sonha com um impossível regresso a casa. Talvez tenham sido a distância e a nostalgia que o tenham recomendado para o papel que vem a assumir: o de historiador amador, e imaginativo, da crónica familiar, que recua até meados do século XIX e se constitui como exemplo do processo histórico de desbravamento e colonização do interior montanhoso e remoto da província colombiana de Antioquia. Tal dispositivo, autorizando ou solicitando mesmo a existência de três vozes e três pontos de vista distintos, parece promissor. É, porém, um pouco vão, neste caso.

Eva cita, a determinada altura, uma nota manuscrita por seu pai na última página de um livro: “Assim devia ser a literatura: repleta de acção, sem espaço para clichés e para as meditações sentimentais. […] A literatura devia regressar ao estilo da Bíblia e de Homero: acção, suspense, imagens e apenas uma pitada de jogos mentais.” (p. 53) Este romance — o quarto livro do autor que se publica em português — parece, por vezes, um ensaio bem comportado, e até um tanto enfadonho, deste programa. Havendo nele espaço para uns quantos clichés e outras tantas meditações mais ou menos sentimentais, não lhe falta acção. Poderia mesmo dizer-se que o “excesso” desta determina a platitude narrativa da obra. Antonio ainda simula, brevemente, parodiar o cânone, ao desfiar o rol genesíaco da sua família; e Pilar parece, a certa altura, querer boicotar a autoridade narrativa do irmão, dizendo que este, quando não sabe a história, a inventa. Porém, no geral, as vozes paralelas dos três irmãos não chegam a ser, na sua alternância mecânica, alternativas e contrastantes. Acrescentam e acumulam peripécias, imagens, “acção”.

História do nascimento de uma fazenda e de uma família e, sobretudo, da posse da terra como condição constituinte da família e da sua sobrevivência, estética e estruturalmente banal e ideologicamente acrítico (verberar tropelias e atropelos de narcotraficantes, grupos paramilitares e outros terroristas na história recente da Colômbia releva do lugar-comum da “correcção” política universal), Oculta é um romance anacronicamente “costumbrista”. Chega ao fim dois anos depois daquele telefonema matutino recebido em Nova Iorque por Antonio. Os irmãos acordam vender a fazenda, que será depois parcelada, para júbilo e lucro dos hoje omnipresentes promotores (creio ser a palavra) turísticos. Os novos senhores da paisagem e do povoamento. Final infeliz e previsível, que sublinha um ponto de vista que talvez não seja apenas de certas personagens: a colonização daqueles “brejos longínquos onde o diabo ainda não tinha chegado”, há um século e meio, é vista como conquista, ganho e criação; a do presente — as novas marcas da história no território — é vista como derrota, perda e destruição. Conta Pilar que o caseiro, chamado Próspero, “às vezes diz que já começa a ser hora de morrermos. Está tudo morto, na verdade, e só falta morrermos nós.” Como o tempo passa.

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