Fabrizio Barozzi é a prova de que a arquitectura europeia está mais do que viva

Atelier vencedor de último Prémio Mies van der Rohe deu conferência no CCB.

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Um homem do Norte, o italiano Fabrizio Barozzi, que tem um fascínio pelo Sul, já esteve várias vezes em Portugal para visitar edifícios desenhados por arquitectos portugueses. Fez visitas particulares antes de chegar o convite profissional para dar uma conferência na semana passada no Centro Cultural em Lisboa (CCB), em Lisboa, no âmbito do ciclo Distância Crítica, organizado pela Trienal de Arquitectura de Lisboa, sobre o seu atelier. O Estudio Barozzi Veiga, que ainda pode ser considerado um atelier de jovens arquitectos, ganhou o último Prémio Mies van der Rohe, o mais importante prémio europeu de arquitectura.

Depois de uma vida com muitas voltas, não é de estranhar que Fabrizio Barozzi tenha acabado por abrir em 2004 um atelier em Barcelona com o espanhol Alberto Veiga, nascido em Santiago de Compostela. Geograficamente, o Estudio Barozzi Veiga é então um atelier catalão, de Barcelona, o cartão-de-visita que os dois arquitectos apresentaram quando venceram em 2015 o Prémio Mies van der Rohe, atribuído à sala de espectáculos para a Filarmónica de Szczecin, na Polónia. A localização na Catalunha, porém, é uma circunstância e a maior parte dos projectos do atelier até ao Prémio Mies teve origem em concursos internacionais que venceram.

A conversa com Fabrizio Barozzi, 40 anos de idade, sobre as visitas que fez a Portugal (e Espanha) para ver arquitectura começou por Álvaro Siza, um dos nomes mais citado quando os arquitectos de Barcelona explicam as suas referências. “A maior parte das minhas referências vêm de Portugal, da arquitectura daqui. Uma delas, claro, é o trabalho de Siza. Tenho as referências típicas: Souto de Moura, Aires Mateus, Carrilho da Graça, Ricardo Bak Gordon, toda esta geração mais nova e também [Fernando] Távora.”

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A Filarmonia propõe uma reflexão sobre a verticalidade num contexto marcado pelos pináculos dos edifícios góticos e neogóticos. O que nos perturba é uma verticalidade num edifício imaculadamente branco que ganha por vezes uma aparência etérea

Estes tempos começaram na universidade, “quando o trabalho de Siza e de Souto de Moura estava no seu esplendor”. “Estava muito interessado nesta arquitectura do Mediterrâneo e do Atlântico. Se nascemos no Norte, ficamos fascinados pelo Sul, e vice-versa.” E se para Barozzi os estudos universitários começaram no Instituto Universitário de Arquitectura de Veneza, eles acabaram na Escola Técnica Superior de Arquitectura de Sevilha, com uma passagem por Paris.

Fabrizio Barozzi, com a sua conversa sobre a importância do lugar, das pré-existências e de gostar de trabalhar na continuidade, parece um discípulo de Siza a falar. A arquitectura portuguesa como sinónimo, então, de arquitectura ibérica, de arquitectura dos países do Sul, e Siza como a figura tutelar desse modo de ver a arquitectura. “Toda a arquitectura portuguesa foi essencial no meu desenvolvimento”, começou por dizer no grande auditório do CCB. “O que fazemos no estúdio depende da nossa biografia e desde o início sempre nos confrontámos com contextos muito distintos.”

O lugar da forma

Qual é o tom adequado da arquitectura? Como é que raciocinamos sobre a especificidade de cada lugar? “Nunca nos interessou construir uma linguagem, mas encontrar o tom correcto na relação da arquitectura com o contexto.”

O projecto nasce da “aparente contradição” entre a especificidade do lugar e a autonomia da forma, ou seja, “parte-se de uma base contextual para descobrir o que de inesperado pode haver”. Na entrevista ao Ípsilon, o arquitecto explica que não se trata só de completar alguma coisa, “mas também melhorar e descobrir novas possibilidades, novas ideias, novas condições para o lugar”.

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Um dos projectos que o atelier de Barozzi está agora a construir na Suíça tem uma estreita relação com o atelier português Aires Mateus Jesus Arenas

O italiano expõe as suas ideias a um auditório cheio de estudantes através de uma forma que é um arquétipo em arquitectura, a coluna. Resultado da intervenção do atelier na última Bienal de Arquitectura de Veneza, a instalação é, na prática, “uma coluna mais”, erguida entre uma floresta de colunas que compõe uma das naves da Cordoaria de Veneza, onde estava a exposição Reporting from the Front. Intitulada Monumentalidade Sentimental, a intervenção dos arquitectos contrapõe uma coluna em betão que nada tem de suportar às colunas de tijolo que não perderam a sua função de apoio.

Barozzi explica que esta instalação fala de “gravidade, peso, geometria” e mostra que o trabalho dos dois arquitectos de Barcelona passa por tentar monumentalizar o que encontram.

O primeiro dos cinco projectos de arquitectura apresentados no CCB é a sede da Denominação de Origem Ribera del Duero, situada na povoação de Roa, em Burgos. Datado de 2006, o coração do projecto é uma pequena praça pública num complexo privado cuja missão é controlar a qualidade do vinho da região. Inscrito numa “paisagem antiga”, é uma obra com alguma dualidade, capaz de exemplificar a tal “contradição aparente” que surge entre a especificidade do lugar e a autonomia da forma. “Três edifícios cosem o tecido urbano. Por outro lado, uma torre tenta ser mais autoritária e marca o fim do urbano frente ao natural. Mas, quando nos aproximamos da torre, vemos que este edifício autónomo nasce do contexto.”

O arquitecto defende no CCB que todo o edifício público, social ou cultural tem de devolver algo à cidade. Outra grande preocupação do atelier é a construção do espaço público: “A arquitectura é uma cornija que define o vazio.” Ou, dito de outra perspectiva: “O espaço público é o vazio que conforma a arquitectura.”  

Para conseguirem construir a praça no centro dos três edifícios, grande parte do programa foi enterrado, uma solução preconizada também noutras obras apresentadas, como a de Chur, na Suíça.

Apesar de continuar a olhar para a arquitectura portuguesa muitas vezes — “ainda são as minhas referências” —, é também verdade que durante os últimos anos começou a trabalhar noutros países do Norte, entre os quais a Suíça, e a olhar para outras arquitecturas e arquitectos. Se ao lado de Siza, aquando da conversa sobre as referências, já tinha aparecido o nome de Peter Zumthor, agora o arquitecto italiano evoca os ateliers de Miller & Maranta e de Christian Kerez.

A obra mais mediática do atelier de Barcelona é a da Filarmónica de Szczecin, com que ganharam o Prémio Mies van der Rohe. Numa cidade polaca que não fica longe de Berlim e que foi arrasada durante a Segunda Guerra Mundial, a Filarmonia propõe uma reflexão sobre a verticalidade num contexto marcado pelos pináculos dos edifícios góticos e neogóticos.

O que nos perturba é uma verticalidade num edifício imaculadamente branco que ganha por vezes uma aparência etérea, difusa. Nada disso é resultado do acaso, diz Barozzi, num projecto em que “trabalharam muito” durante nove anos. “O edifício muda bastante durante o dia, porque a fachada é feita de lâminas verticais muito finas em alumínio, pintadas de branco, com um vidro opalino por detrás.”

A uma distância de 20 a 30 metros, o arquitecto afirma que o edifício parece um monólito, um sólido, mas fica mais etéreo quando o sol lhe bate de frente, provocando alguns reflexos. “A ideia era criar um monólito que durante o dia pudesse mudar de aparência, pudesse mudar a materialidade. É também muito diferente durante a noite porque a forma do edifício aparece através da luz. Quando o espectáculo chega, o edifício afirma-se.”

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A ampliação do Museu das Belas-Artes de Chur, na Suíça

Em Szczecin, o tempo muda constantemente. “A ideia era criar um edifício que conseguisse reagir a estas mudanças súbitas. Fizemos muitos testes para construir esta fachada complexa e decidir a que distância ficariam os elementos de alumínio uns dos outros.”

Barozzi, que gosta de definir os seus projectos através de palavras, como sublinhou a crítica de arquitectura Ana Vaz Milheiro que no CCB apresentou o atelier, não é muito receptivo quando perguntamos se as catedrais góticas foram a inspiração da Filarmonia. Na monografia dos seus projectos, publicada pela Park Books, “específico” é a palavra escolhida para a obra da Polónia.  

Szczecin tem muitos blocos-torres dos anos 60 ou 70, partes medievais que resistiram e outras reconstruídas. Pelo meio, há alguns edifícios góticos bastante bonitos, nota Barozzi. “Mas a Filarmonia parece mais alta do que é, uma ilusão que é dada pela sequência de elementos verticais. Se olharmos para o edifício com atenção, a fachada é mais longa do que alta.” E voltamos às palavras que proferiu no CCB a propósito deste edifício: “O específico não significa nada, se não tivermos uma abordagem crítica. Quando pensamos no específico, isso também significa aprender.”

O projecto, que tenta resolver uma esquina urbana, não permitia fazer uma praça pública exterior. Por isso, os arquitectos ocuparam quase todo o andar inferior com um grande foyer que se afirma como um grande espaço público.

Como se faz uma sala contemporânea para música clássica? — acabou por ser uma das perguntas mais importantes colocadas pelo projecto. Foi ao definir um detalhe do auditório ­— a forma das placas acústicas passou a ser entendida como um ornamento — que os arquitectos conseguiram pensar no resto da sala sinfónica. A tradição artesanal do trabalho com a madeira na Polónia também foi determinante e a qualidade expressiva das placas triangulares foi sublinhada pela cobertura a ouro. “É a ideia da ornamentação reinterpretada.”

Dois museus e o atelier Aires Mateus

A ampliação do Museu das Belas-Artes de Chur, na Suíça, ficou terminada no Verão passado. O edifício antigo, onde funcionou até agora o museu, é “bizarro”, nas palavras do arquitecto, porque se trata de uma obra neopalladiana do século XVIII com uma decoração orientalista. A isto tudo, em 1982, o arquitecto Peter Zumthor acrescentou um jardim de Inverno.

O museu, conta Barozzi no CCB, tinha uma área extremamente limitada para onde se expandir. Os arquitectos tentaram compactar o edifício para libertar o espaço público em redor e enterraram as galerias de exposição.

Tal como os arquitectos originais, Barozzi e Veiga também se inspiraram na Rotonda de Palladio. Entenderam os dois edifícios como um díptico e Barozzi mostrou mesmo na conferência do CCB o famoso duplo retrato dos duques de Urbino, que de perfil olham um para o outro com a paisagem como último plano. “Ambos os edifícios, que se unem um ao outro através do espaço público, estão construídos com os mesmos elementos, com a mesma composição.”

O novo Museu de Belas-Artes surge como um cubo quase cego, com as simetrias muito marcadas. As quatro fachadas são cobertas por um baixo-relevo de sabor orientalista, citando a decoração do museu original, construído através de painéis pré-fabricados de betão. Barozzi voltou a lembrar que é preciso tirar partido das tecnologias disponíveis nos locais e aqui quiseram explorar o facto de a “Suíça estar na vanguarda do trabalho com betão”, enquanto na Polónia havia a tradição da madeira.

Um dos projectos que estão agora a construir na Suíça tem uma estreita relação com o atelier português Aires Mateus. O atelier de Barcelona ganhou o concurso para fazer um plano geral com dois hectares em pleno centro de Lausanne, onde devia inserir os três principais museus da cidade, numa zona dominada pelas linhas de comboio e todas as suas infra-estruturas de apoio.

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A sede da Denominação de Origem Ribera del Duero, situada na povoação de Roa, em Burgos

“O primeiro concurso que ganhámos foi para imaginar um novo masterplan e fazer o museu principal, que é o Museu do Cantão de Belas-Artes. O nosso objectivo foi criar uma estratégia urbana.” Antes de fazer o projecto de arquitectura, como explicou na conferência, era preciso construir a cidade que o ia albergar, resultado da desactivação de uma zona industrial. Decidiram demolir grande parte da nave de um edifício de manutenção dos caminhos-de-ferro para poderem abrir uma grande praça.

Esse edifício antigo bloqueava o local, mas mesmo assim conseguiram conservar alguns elementos-chave, como um arco que organiza o hall principal do novo museu e se tornou o elemento compositivo principal de todo o projecto. Do lado de fora, na face voltada aos comboios, esse elemento é um grande janelão.

“O edifício é muito sóbrio mas muito radical, porque propusemos criar um limite, uma fronteira com os comboios. De um lado o edifício é muito fechado, do outro é muito permeável. A ideia é que a arquitectura seja uma moldura. O núcleo do projecto foi criar este grande espaço público. Com este simples elemento, que é muito estreito e muito longo, criamos este limite e podemos abrir esta nova praça relacionada com a cidade.”

Na segunda parte do plano, o atelier Aires Mateus ganhou o concurso para a construção dos outros dois museus, com um júri de que Barozzi fazia parte. É a maior obra que o atelier de Lisboa tem neste momento em construção e a solução encontrada pelos irmãos Aires Mateus passa pela concentração dos dois museus num só volume. “A proposta dos Aires Mateus foi combinar estes dois museus numa peça. No princípio era impossível, porque os dois museus eram maiores, mas eles perceberam o plano geral, porque criaram esta peça capaz de fazer um remate muito claro na praça.” Agora, os dois ateliers estão a trabalhar juntos para descobrir como fazer a ligação entre os dois projectos.

Foi a Casa em Cretas (2014), Espanha, que fez voltar o atelier de Barcelona à dimensão doméstica. É um pequeno refúgio na região de Aragão para passar o fim-de-semana, erguido no meio de um terreno de 12 hectares e colocou-os perante um novo dilema: como desenhar quando não há nada a que os arquitectos se agarrarem ou para dar corpo a um discurso arquitectónico. Encontraram uma pequena colina e sobre ela foram desenhados quatro pavilhões. A expressão dos pavilhões é uma sequência de pilares de betão, que Barozzi sublinhou não poderem ser descritos nem como uma coluna nem como uma janela.

“O que nos interessa é o que se passa entre. Mais do que a construção da casa é a construção de um lugar.”

Num momento em que “a arquitectura está numa crise de identidade, um escritório como o deles prova que a vertente mais erudita não desapareceu”, diz ao Ípsilon Ana Vaz Milheiro, a crítica de arquitectura do PÚBLICO a quem coube discutir no CCB o trabalho de Barozzi e Veiga. “Há conceitos de que os arquitectos tinham desistido, como os da monumentalidade, do ornamento, da tradição, da resistência, que o atelier retoma abertamente. É a prova de que a arquitectura europeia está mais do que viva.”

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