Estes Brasis que nos soam

Agora que vamos entrar no mês das Presidenciais brasileiras (que ficarão resolvidas a 5 de Outubro ou a 26, conforme seja ou não necessária segunda volta), justifica-se um regresso ao Brasil e às suas múltiplas vozes que por aqui vão passando com diferentes ecos. 2014 foi um ano com brilhantes apresentações em palco de Caetano Veloso ou Ney Matogrosso, mas também com regressos dignos de nota de Mônica Salmaso ou Eliane Ellias, a par da estreia absoluta do projecto Eterno Pixinguinha, conduzido por Bia Paes Leme ou da estreia de Giana Viscardi, uma jovem voz que urge descobrir. Como o ano não acabou, anuncia-se ainda Gilberto Gil, num projecto que homenageia João Gilberto, Gilbertos Samba (8 Novembro, CCB); o gaúcho Vítor Ramil a apresentar o excelente disco Foi No Mês Que Vem (S. Luiz, 7 de Outubro, com Mário Laginha, Gisela João e Carlos Moscardini como convidados); e, já no cartaz de 2015, José Miguel Wisnik (com Arthur e Lívia Nestrovski) e Adriana Calcanhotto, ambos na temporada da Gulbenkian em Fevereiro.

Há, porém, em Lisboa, num circuito paralelo ao das salas consagradas, um espaço pequeno mas deveras singular onde já tocou essa lenda viva chamada Elomar numa noite memorável de 2008. Esse espaço dá pelo nome de Auditório do Museu da Música (ao Alto dos Moinhos, junto à homónima estação do Metro) e, no campo da música brasileira, tem marcado pontos este ano. Depois da dupla André Mehmari e Leandro Maia, recebeu Bianca Gismonti (cantora, compositora e pianista, filha de Egberto Gismonti), Luis Felipe Gama e Ana Luiza e agora anuncia Fernanda Cunha, que ali apresenta Coração do Brasil a 3 de Outubro (não só lá: dia 1 estará no Teatro Helena de Sá e Costa, no Porto; dia 2 em Vila Real; e dia 4 em Évora). Quem não conhece Fernanda Cunha, aproveite: é uma das vozes que vale a pena escutar, com gosto e sem pressas, de entre as muitas que o Brasil nos tem dado nos últimos vinte anos.

Para quem não nunca o visitou, diga-se que o auditório se situa em pleno espaço museológico, filas de cadeiras e “palco” rodeados de instrumentos de várias épocas, definitivos e desafiadores, cada qual a sugerir um som, uma escola, múltiplas artes. Assistir, nesse cenário, ao concerto que ali deram (a 5 de Setembro) o pianista Luis Felipe Gama e a cantora Ana Luiza foi uma bênção, com momentos de tirar o fôlego. Se no piano ele mostra uma agilidade e uma eloquência que justificam por inteiro a mínima atenção que lhe é prestada, Ana Luiza é, sem medo da palavra, extraordinária. Lembrando Elis sem nunca cair na tentação de imitá-la, senhora de assombrosas inflexões de voz, com um domínio rigoroso da palavra cantada, dos tons e dos tempos, ela incorpora a emoção do canto de forma tão natural que quem a ouve se deixa hipnotizar a cada frase, lenta ou veloz (às vezes velocíssima, sem perder a clareza), suave ou forte, mas sempre admirável. Deixaram por cá dois discos de nota alta (não nas lojas, infelizmente, apenas na mão de quem os comprou) que mereciam atenção dos distribuidores: Entrelaço, em CD duplo; e Vermelho, o mais recente. E deixaram uma informação espantosa: têm, gravado e pronto (mas sem editor, um desperdício!), um disco só com letras de Tiago Torres da Silva (de quem já gravaram, em Vermelho, o belo Por detrás das janelas), com a participação de nomes como Ney Matogrosso, Alcione, Elba Ramalho, as portuguesas Simone de Oliveira e Susana Travassos (que cantou com eles, ao lado de Joana Amendoeira, no Museu da Música) e Dominguinhos, entretanto falecido, em 2013.

Por falar em Dominguinhos: não percam, no DocLisboa que se avizinha, na secção Heart Beat, o documentário sobre a vida e obra deste lendário sanfoneiro. O filme chama-se Dominguinhos, é realizado por Mariana Aydar, Eduardo Nazarian e Joaquim Castro e tem vários momentos antológicos da sua arte. Ao lado da cantora Anastácia, mas também do rei do baião, Luiz Gonzaga, de Nana Caymmi, Gal Costa, Gilberto Gil, Elba Ramalho, Djavan (com o genial Yamandú Costa), Guadalupe (cantora com quem viria a casar-se mais tarde) e Hermeto Pascoal, num “duelo” frenético. O arrepio que se sente ao vê-lo a acompanhar Nara Leão em João e Maria, de Chico Buarque, só tem paralelo na imagem inicial do fole da sanfona como o respirar do sertão. Ou, se quisermos, o respirar do Brasil, neste mês de tantas interrogações.     

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