Este parasita benigno chamado Tremor espalhado por Ponta Delgada

O Tremor, festival nascido em Ponta Delgada em 2014, recebeu os Black Mountain, Bonnie Prince Billy, os PAUS, Capitão Fausto ou Dan Deacon. O mais importante não é saber quem esteve em cartaz, mas como esta música, vivida assim nesta cidade, transforma quem a recebe e quem a visita.

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A guitarra de Filho da Mãe na Igreja do Colégio Vera Marmelo
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Os Paus no auditório Luís de Camões Vera Marmelo

O maestro não tem batuta e não veste fato. Está de costas para o público e o cabelo comprido escorrido agita-se enquanto dá ordens à orquestra: braços abertos na direcção dos saxofones, trompetes e clarinetes, corpo a virar-se depois para as guitarras e flautas. O maestro em palco não está sempre de costas. Também o público receberá indicações para participar, tornando-se matéria sonora do concerto. Todos juntos: o público no auditório Luís de Camões, o público do micaelense Tremor, portanto, os catalães Za! (um é o maestro, o outro encontramo-lo à bateria) e a orquestra que aqueles orientam, formada pelos alunos da Escola de Música de Rabo de Peixe.

Sábado de manhã. Famílias passeiam pelas Portas da Cidade, aproveitando o sol e a esplanada frente à Igreja Matriz. Há movimento nas ruas de comércio e gente que conflui para o mercado, procurando as mil variedades de queijo. Neste, ao fundo do corredor que se estende defronte do café, veremos uma montra e, nela, uma viola. Não é viola de loja de música. É viola de barbeiro. Do senhor Dinis, que enquanto não corta cabelo e apara barbas, é violista de fado. Na sua cidade já acompanhou Luiz Goes ou Vicente da Câmara, conta-nos sob o olhar inspirador de Amália Rodrigues, ali retratada em ilustração.

“Veio para ver o Tremor? Já ouvi falar, mas é o quê? Uma banda?”, perguntará o senhor Dinis. Não, não é exactamente uma banda. São 50 bandas que se apresentam ao longo de uma semana, num crescendo que culmina sábado, quando dezenas de músicos e grupos actuam espalhados pela cidade, dando vida a igrejas, auditórios, lojas, bares, armazéns, restaurantes ou bibliotecas. Não é uma banda, mas também não é simplesmente um festival.

O Tremor foi criado quando Luis Banrezes, editor da Yuzin, magazine cultural de Ponta Delgada, e o dançarino, performer e produtor António Pedro Lopes, inspirados pelo que viam acontecer na cidade durante o Walk & Talk, festival de arte urbana de São Miguel, pensaram criar algo semelhante, mas com a música como força motriz. Convocaram a editora e promotora portuense Lovers & Lollypops e, em 2014, tornava-se oficial.

Duas edições depois, o Tremor cresceu e expandiu a sua programação. A cidade mudou igualmente. Ganhou vida e visitantes desde que, em Abril do ano passado, os Açores ficaram mais perto do resto do mundo com o início dos voos low-cost para as ilhas. Há algo, porém, que se mantém inalterado. “Costumamos dizer que todos nós somos responsáveis por ter um papel activo na cidade em que vivemos. Tu é que inventas o teu lugar”, dizia ao Público António Pedro Lopes, quando a noite de sábado se aproximava do fim no Coliseu Micaelense, que acolheu concertos dos Capitão Fausto, PAUS ou Dan Deacon.

Foi um sábado cheio. Começou cedo na Biblioteca da Escola Secundária Antero Quental, outrora salão do palácio do Barão da Fonte Bela, onde aconteceu o Mini Tremor, ou seja, a programação para a criançada que correu entre confetis e balões enquanto ouvia concertos, por exemplo, do duo Alek & The Japonaises. A partir da tarde, viram-se os Bitchin Bajas com o lendário Bonnie Prince Billy, qual oração celestial no auditório Luís de Camões, ouviram-se os Black Mountain, na sua estreia portuguesa, fazerem ponte fiel e febril com o hard-rock e o psicadelismo da boa colheita de 1970 (IV, o novo álbum foi tocado pela primeira vez na sala de um bar e restaurante feito solar, o da Graça), seguimos o trinado da guitarra de Filho da Mãe no imponente cenário da Igreja do Colégio, a mesma onde, quinta-feira, fôramos presenteados com a voz tonitruante e o teatro feito canção desse tesouro micaelense chamado Zeca Medeiros, e vimos horas depois o mesmo Filho da Mãe, no bar de marinheiros chamado Cantinho dos Anjos, electrificar-se e rockar sem rede com a companhia do baterista Ricardo Martins.

A cidade não foi submersa pelo Tremor, mas como que ganhou uma nova camada de vida. Em simultâneo, a agitação das gentes caminhando de sala em sala e a calma retemperadora desta serena Ponta Delgada. Num momento, a estridência de um concerto punk, no seguinte, à distância de um par de quarteirões, nada mais que a luz do dia quente e o chilrear dos pássaros nas árvores. O Tremor vive da “experiência da ilha e da ligação da música à estrutura da ilha”, diz António Pedro Lopes. Dirá, também, que o festival funciona como um “parasita”. Um parasita benigno que se infiltra para acelerar a mudança.

São 17h e subimos a uma sala no primeiro andar do Louvre Michaelense. O ano passado, o Louvre em obras abriu propositadamente para acolher um concerto. Este ano, já é loja de produtos regionais, arte e artesanato. No por agora inactivo piso sobre a loja, actua a violinista Sara Fontán. Um miúdo muito agitado antes de o concerto começar, está agora imóvel, palhinha na boca, todo ele concentrado, entre o intrigado e o maravilhado, com o som que vê nascer perante si. Para o ano, talvez o Louvre Michaelense já tenha ganho extensão ao andar superior. Daqui a dez anos, pode ser que o miúdo na assistência seja músico em palco. Assim funciona a parasitagem do Tremor.

Existe o que é óbvio e visível. O concerto feito ritual voodoo dos inigualáveis HHY & The Macumbas no Ateneu Comercial, a celebração com as canções dos Capitão Fausto, verdadeiramente em estado de graça, e a força propulsora dessa máquina imparável chamada PAUS. E depois, madrugada alta, Dan Deacon e um baterista endiabrado a transformarem o Coliseu em rave improvisada. Faltaram os Clinic, uma das bandas mais célebres em cartaz, obrigados a cancelar por um dos membros ter ficado retido em Liverpool, mas um acontecimento deste tipo, no quadro geral, nada tem de trágico. No Tremor vive-se mais “o espírito da curiosidade que a legitimação da celebridade”, como destaca António Pedro Lopes.

Casper Clausen é membro dos Efterklang, banda dinamarquesa de relevo na comunidade da música independente. A sua nova aventura musical chama-se Liima e lançou o álbum de estreia na última sexta-feira. Casper não veio tocar ao Tremor. Veio descobri-lo. Calcorreou as ruas, viu os concertos, comeu o pampo, peixe carnudo irrepreensivelmente grelhado, no Delícias do Mar, pelo senhor Joaquim de grandes e sábios bigodes de velho pescador. Casper acompanhou o Tremor na Estufa, que de terça a sexta-feira, ao final de tarde, levou público a concertos surpresa em locais inesperados – os barcelenses Killimanjaro num parque de skate em zona industrial, os lisboetas Modernos no estádio do Santa Clara, o duo escocês Happy Meals a protagonizar uma sessão na piscina de água aquecida das termas da Ferraria. Casper, como os cerca de dois mil visitantes do Tremor, viveu a semana em visitas às Furnas, às Sete Cidades, à Ribeira Brava, às praias, lagoas e montanhas. Depois chegou o sábado em que tudo acontece e Casper exclamará “nunca vivi um festival assim”. Explica: porque a cidade abre os seus espaços à música e a quem a visita, porque a escala humana em que acontece permite uma proximidade de toda a relevância nestes dias vividos com tanto distanciamento e tantos filtros em todo o tipo de relações.

Para o ano, afinar-se-ão agulhas. “Dei por mim a pensar que menos é mais”, confessará António Pedro Lopes, reflectindo no facto de a sobreposição dos horários dos concertos, fruto dessa vontade de mostrar o mais e o mais diverso possível, ter levado a que alguns concertos, como o de Bonnie Prince Billy com os Bitchin Bajas, se tenham progressivamente esvaziado de gente em busca de outra música, noutras salas. Mas o Tremor manter-se-á o que se tem revelado ser: um acontecimento que aproxima, estimula e multiplica - não por acaso, o número de bandas açorianas em cartaz é cada vez maior e músicos locais como o saxofonista Luís Senra, a cantautora Sara Cruz ou o blues-rocker King John tornaram-se reconhecidos e muito admirados.

É por tudo aquilo que o concerto dos Za! com os músicos da escola de Rabo de Peixe foi exemplar. Uma melodia familiar que emerge no fim – “oh, when the saints / go marching in” -, os miúdos da escola e seus maestros a passarem pelos corredores do belíssimo auditório micaelense, sala moderna decorada como pátio popular antigo, em direcção à saída e o público a ser surpreendido quando abandona o auditório. Lá fora, na escadaria, o concerto continua.

A música a sair à rua – isso é o Tremor. Uma ideia de festival a contagiar a comunidade em volta: e eis os miúdos músicos de Rabo de Peixe celebrando a sua criatividade, mostrando-se com sorriso aberto e talento óbvio, guiados por uma banda catalã que, depois da passagem pelo festival o ano passado, fez questão de regressar. Um momento tão emocionante quanto comovente. Aconteceu sábado, o dia grande do Tremor. Muito já acontecera. Muito está ainda por acontecer.

 

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