Estão todos bem, Sandokan

Com Sandokan, o Tigre da Malásia, quisemos ser piratas justiceiros e derrotar ingleses imperialistas, prepotentes, desonestos e feios. Da série italiana ficou sobretudo a grande lição de Emilio Salgari: havia os bons e os maus, que eram os bons.

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Muito rímel, muito eyeliner: a imagem de marca de Sandokan na série italiana de 1976 DR
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O actor indiano Kabir Bedi protagonizava Sandokan, o Tigre da Malásia DR
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Mariana (Carole André), o amor de Sandokan DR
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Ianes, o português errante, e Sandokan DR
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Estão todos bem, Sandokan. Alguns têm mossas à superfície. Outros ficaram com feridas mais profundas.

O Manuel, o Pepe, a Bel, a Maria, o Lucy, as gémeas, o Carlos, a Isaura, o Fresquinho, o Paulo.

O Pepe era quase sempre o líder. Organizava os grupos, escolhia sempre a Maria porque gostava dela e nunca deixou de gostar, nem quando ela ficou com manias e mudou de amigos. Era o momento mais delicado do fim de tarde, a escolha dos grupos. Havia discussão, chantagens, amuos — nunca mais te falo.

Para um lado da rua, o Pepe mandava os ingleses. Para o outro lado, mandava os piratas. Queríamos todos ser pirata.

O Pepe era o Sandokan. Vestíamos-lhe um casaco de veludo roxo, atávamos-lhe um lenço comprido dourado à cabeça e carregávamos o rímel e o eyeliner nos olhos do Pepe, que eram mais bonitos e mais translúcidos do que os do actor indiano na televisão.

Não me lembro em que dia passavam os episódios da série, que era italiana. Das histórias também não ficou memória. Lembro-me que havia os bons e os maus, que eram os bons — a grande lição que Emilio Salgari nos ia fazendo entrar na cabeça enquanto perfurávamos os estômagos uns dos outros com espadas de ramo de eucalipto que cheiravam bem e manchavam as camisolas, os vestidos e as saias de resina pegajosa.

Quanto tempo durou a série? Também não tenho ideia — nem fui ver às cábulas, que isso não se faz quando nos pedem um exercício de memória.

Do que me lembro bem é de andarmos sempre em contra-corrente. Não trocávamos cromos, não sonhávamos em vestir saris. Nem a Bel, nem as gémeas, nem a Isaura — nem eu — se apaixonaram pelo Sandokan, como nos contavam as outras miúdas na escola. Nem sequer a Maria, que fazia sempre de Mariana, aproveitando-se daquela paixão do Pepe para nunca sujar os joelhos; os nossos estavam sempre esfolados e tingidos de vermelho do mercurocromo, rotos a trepar montes de areia tão endurecida que se podia esculpir, a deslizar na encosta barrenta cheia de pedregulhos, a cair trambolhões no meio do mato seco que crescia à volta do bairro e que não tinha menos exotismo do que as paisagens do Bornéu de Salgari.

Do que gostávamos no Sandokan, o Tigre da Malásia era de fazer de conta que derrotávamos ingleses imperialistas, prepotentes, desonestos e feios. Do que gostávamos no Sandokan era que nos dava motivo para ficarmos na rua até tarde, a brincar com as sombras e a montar emboscadas que faziam de nós justiceiros da noite, como os piratas cavalheiros e aristocratas de Salgari.

O Pepe cresceu apaixonado pela Maria — um herói romântico e trágico, como todos os heróis de Salgari, tão movido pela justiça como pelo amor.

É assim que Salgari apresenta o seu novo herói na primeira aventura do Tigre da Malásia. Sandokan está impaciente, expectante. Mandou Ianes, o português errante, numa importante missão. “Atirou para trás o cabelo longo e ondulado, pegou num turbante adornado com um diamante do tamanho de uma noz, colocou-o na cabeça e depois pôs-se de pé: ‘É meia-noite’, murmurou. ‘Meia-noite e ainda não voltou’.” Umas linhas à frente e ficamos a saber que o herói arriscou a vida do amigo para descobrir quem é a mulher por quem se apaixonou, à primeira vista.

A Mariana do Sandokan morreu e o Pepe também não teve sorte. A Maria passou a só ir ao bairro para dormir e depois nunca mais por lá foi vista. O Manuel vive no campo. Partiu depois de o comboio lhe passar por cima da perna, pensámos que o perdíamos, ficou tão amarelo e tão magro, foi o Carlos que lhe salvou a vida, “cuidado”, ele ainda se atirou contra a grade mas o corpo fez ricochete e a porcaria da perna ficou do lado de dentro da linha. Ao Fresquinho, um dia vieram buscá-lo: o teu pai morreu, o lugar dele na fábrica é teu, e lá ia ele muito cedo, de bicicleta e farda cinzenta, ser operário. Deixou de nos falar. Uma das gémeas casou com o Carlos, é viúva. O Paulo partiu-me o coração — casou com a filha do dentista.

Mas o Lucy continuou a brincar aos piratas e a perseguir sombras. Espetaram-lhe um faca no coração.

Já vês, alguns têm mossas à superfície, outras feridas mais profundas. Mas, em geral, estão todos bem, Sandokan.

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