Estado autoriza saída do país de uma rara escultura alemã do século XVI

Peça pertence aos herdeiros dos duques de Loulé e deverá ser leiloada em Londres a 8 de Julho. Obra não está classificada nem inventariada e a autorização de saída foi dada pela direcção-geral do Património.

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O baixo-relevo que vai a lelilão terá sido executado em Nuremberga, no sul da Alemanha, por volta de 1540-60 Cortesia: Sotheby's

É um baixo-relevo em calcário, representando a crucificação, com Maria ao centro de uma composição com cavaleiros e soldados. Foi feito na Alemanha, provavelmente em Nuremberga, por volta de 1540-1560, pertence a uma colecção portuguesa e deverá ser leiloado a 8 de Julho, em Londres. A Sotheby’s, que o levará à praça e que o classifica como um “exemplo excepcionalmente raro de um relevo de grande escala [79,5X79 cm] do Renascimento alemão”, estima que venha a ser arrematado por uma soma entre as 300 mil e as 500 mil libras (400 a 700 mil euros).

Em Portugal há 200 anos, pertence aos herdeiros do duque de Loulé, tendo passado de mão para mão dentro da família há já sete gerações, lê-se no catálogo que a leiloeira tem online. O baixo-relevo, de autor desconhecido mas com influência do escultor alemão Hans Daucher, fazia parte da grande colecção de arte do sexto marquês de Marialva, Pedro José Joaquim Vito de Meneses Coutinho (1775-1823), que terá recebido do Papa Pio VII, quando era embaixador em Paris, nas cortes de Napoleão e Luís XVIII. Tendo morrido sem filhos, o também conde de Cantanhede deixou o baixo-relevo à irmã, marquesa de Loulé. Foi deste acervo que passou para o património do primeiro duque de Loulé, casado com a filha mais nova do D. João VI e de D. Carlota Joaquina.

Foi em Novembro último que os actuais donos requisitaram autorização para a obra viajar à Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), que disse que sim. Num breve email em resposta ao PÚBLICO, a assessora de imprensa da DGPC, Maria Resende, explica que o pedido de expedição do baixo-relevo, “com destino a Londres, Sotheby’s”, foi feito para “estudo e venda” e que “mereceu despacho favorável à saída do território nacional”. Esclarecendo que “a peça em causa não se encontra classificada ou inventariada”, a DGPC acrescenta ainda que o Estado “não exerceu qualquer direito de preferência sobre a [compra] da mesma”, “face à inexistência de protecção legal do bem em causa”. Caso estivesse inventariada ou classificada, a decisão dos serviços que tutelam o património poderia ter sido outra? E por que razão, durante dois séculos, não foi esta peça classificada ou, pelo menos, inventariada?

Rafael Moreira, historiador de arte especializado em arquitectura e escultura do Renascimento, não estranha que o baixo-relevo não esteja classificado nem que tenha sido dada autorização para que seja vendido no estrangeiro. Ainda que reconheça que é uma “obra extremamente rara” e “interessante”, este professor da Universidade Nova de Lisboa defende que ela tem sobretudo importância para os museus alemães e que não faria qualquer sentido, por exemplo, nas colecções do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), onde seria apresentada sem qualquer contexto: “No MNAA não há uma secção de arte alemã, nós não temos uma tradição de coleccionismo nem sequer muito conhecimento reunido sobre a escultura da Alemanha do século XVI. Se o baixo-relevo fosse para uma parede do museu estaria sozinho. E não é espectacular, como o Crivelli, que só por si seria capaz de atrair muitos visitantes. Se o Estado não tem dinheiro para comprar uma pintura da qualidade do Crivelli e a deixa sair… Comparado com isso, este é um episódio menor.”

Artisticamente, diz Rafael Moreira, a obra que vai a leilão em Londres não é de “grande qualidade”, embora seja “significativa”. “Fica muito longe de peças semelhantes italianas, francesas e até espanholas. Não faria sentido classificá-la. É coisa para os museus alemães, onde é certamente importante”, diz. “É possível que seja comprado pelo museu de Munique.”

A DGPC não explicou por que razão não estava a obra classificada nem se fez algum esforço para encontrar mecenas que viabilizassem a compra para os museus portugueses, que não têm nenhuma semelhante nas suas colecções, mas lembrou que “existem diversas esculturas em baixo-relevo figurando calvários, vias sacras, anunciações, entre outros […], de proveniência diversa, nomeadamente produções portuguesas, italianas, escocesas e francesas”. Origens que, segundo Moreira, são bastante mais relevantes em termos nacionais: “Os museus portugueses não devem voltar-se para esta arte alemã da pós-reforma. Devem preocupar-se com a arte ibérica, com a arte portuguesa e a sua relação com a Itália do Renascimento.”

É por isso que, diz, “faz sentido” que a direcção-geral do Património tenha aberto em Março um processo de classificação de uma escultura renascentista italiana do século XV, atribuída a Gregorio di Lorenzo. Esta placa de mármore com a representação da Virgem com o Menino, que deverá vir a ser considerada um bem móvel de interesse nacional, pertence a uma colecção privada portuguesa, tal como o baixo-relevo alemão.

Em Março, a DGPC não esclareceu se o processo de classificação tinha sido aberto na sequência de um pedido de expedição para venda no estrangeiro. O que o PÚBLICO sabe é que, nessa altura, a direcção-geral pediu aos técnicos do Museu de Arte Antiga que avaliassem a importância do relevo italiano, algo que agora não aconteceu.

A DGPC dispõe de uma equipa de técnicos que se encarregam de analisar o património móvel que é objecto de pedidos de expedição, mas é habitual recorrer aos seus museus de referência, como o MNAA, sempre que considera que as obras o justificam. A direcção-geral não quis explicar por que razão, desta vez, não contactou os conservadores de Arte Antiga nem esclareceu se procurou ouvir outros peritos, por exemplo do Museu Machado de Castro, em Coimbra, que guarda uma das melhores colecções de escultura do país.

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