Escrever para superar o abominável

Um ano, dois romances e uma escritora que escreve sobre o tempo. No fim, ficamos nós, imortais na nossa banalidade humana. Ali Smith testa-nos para nos comover, e vai rindo connosco.

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Há quase dez anos que podemos lê-la em português, mas nunca conseguiu por cá a notoriedade que adveio de ser uma das mais brilhantes e originais autoras das letras contemporâneas Sarah Wood

Outono começa assim: “Foi o pior dos tempos, foi o pior dos tempos. De novo. E esse o problema das coisas. Desfazem-se, sempre se desfizeram, sempre se desfarão, está-lhes na natureza. Um homem muito velho dá então à costa.” É o princípio de tudo, o princípio do mais recente romance de Ali Smith, que arranca com um homem a olhar o mundo a partir da sua morte. Olha este tempo, que a escritora diz ser a altura de decidir entre a Ilíada ou a Odisseia, a guerra ou a hospitalidade.

Ali Smith está em casa e tem os olhos verdes abertos ao céu nas fotografias de Antonio Olmos. É de casa que escreve, que fala; é a partir de lá que dá entrevistas. O seu centro é a sua rua de casas victorianas em Cambridge. Quem só a conhece dos livros, estranha a tensão que passa em muitas entrevistas. Mas quando a tensão cai, sente-se a celebração que é cada um dos seus livros. Mesmo trágica. É quando se nota o verde dos olhos, a cor que tantas vezes se esconde entre as pálpebras.

Natural de Invernes, Escócia, onde nasceu em 1962, podia ser personagem dos seus romances. Filha de operários, revelou a sua excepcionalidade muito cedo, tornando-se aluna brilhante. Pouco depois trabalhou na apanha de alfaces, foi empregada de mesa, recepcionista, editora de textos, professora em Edimburgo, conferencista. Diagnosticada com síndroma de fadiga crónica, regressou a Cambridge, onde se especializou no Modernismo, ou melhor, em tentar provar como o Modernismo literário, notado pelas suas manifestações mais cerebrais, estava intimamente associado a uma noção de banal ou de quotidiano.

De Cambridge, passou a contemplar o tempo para aprender a manipulá-lo literariamente e fez dele o seu grande protagonista, para o subverter. Em Outono, o seu mais recente romance que acaba de publicar em Portugal, olha-o de frente. É um livro sobre o presente, o primeiro romance após o “Brexit”, como o classificaram os críticos anglo-saxões. Nele, um homem e uma mulher separados por 70 anos conversam. Ele, mais velho, dá-lhe as ferramentas para entender um presente que olha desde o seu passado e que ela vive na sua precariedade presente.

Partindo de um poema de John Keats, Ali Smith deixa-se contaminar pelo ritmo poético e traz a perplexidade, a angústia, a nostalgia e a ironia. “Elisabeth Demand — trinta e dois anos, leitora numa universidade em Londres com contrato sem termo nem horário fixo, a viver o sonho, diz a mãe, e vive, se o sonho equivaler a não ter qualquer estabilidade...” Depois há Daniel. “Daniel Glück olha da morte para a vida, depois novamente para a morte. A tristeza do mundo.” Um e outro são metáforas de duas formas de apreender a partir de uma fórmula universal: um tempo morre para dar lugar a outro. Não é linear. É circular. E voltar à base, a Homero. E ler as entrelinhas, os sinais, interpelar. Porque se ama? De que modo se pode amar? “É possível (...) amar não uma pessoa, mas os seus olhos”, diz Daniel sobre um amor antigo.

Ali Smith escreve como que alimentada por uma vertigem. O tempo passa e há que o agarrar, torná-lo literário. E nisso é voraz.

O trabalho sobre o tempo

Permitiu-se ser muito mais lenta no romance anterior, How to Be Both, que vai chegar a Portugal também este ano. Quer saber coisas como: como é que a ficção pode representar a sincronia que existe na vida? Como é que em ficção se pode narrar a sucessão de acontecimentos em simultâneo que caracteriza o real?

É a partir dessa hipótese que parece trabalhar, explorando os limites da literatura enquanto celebração da existência até parecer que o tempo se dilui, se deixa de sentir enquanto tempo para se aproximar de outra coisa. Por exemplo? Arte ou amor.

Leia-se esta passagem de How to Be Both: “... amor e pintura são obras de habilidade e de pontaria: a flecha encontra o círculo do seu alvo, a linha recta encontra a curva ou o círculo, as duas coisas encontram-se e a dimensão e perspectiva acontecem: e na produção de quadros e de amor — de ambos — o próprio tempo muda de forma: as horas passam sem ser horas, tornam-se algo mais, tornam-se o seu oposto, tornam-se atemporalidade, tornam-se tempo nenhum.”

How to Be Both (2014) é o romance em que Ali Smith leva mais ao extremo esse trabalho sobre o tempo. Dividido em dois livros, passa-se no presente de George, um adolescente a quem, pouco antes de morrer, a mãe lança um enigma: que se imagine um artista. Ela diz-lhe mesmo: “És um artista”, agora imagina. E é o princípio de um acto imaginativo que se prolonga. Meses depois, na noite de passagem de ano, o primeiro ano a passar sem a mãe, ele está sozinho e lembra-se de uma canção. “George está a gastar os primeiros minutos do ano novo a olhar a letra de uma velha canção. Let’s twist again. Letra de Kal Mann. As palavras são muito más. Let’s twist it like we did last Summer. Let’s twist it like we did last year. E há então uma rima muito ruim, uma rima que não é, propriamente falando, mesmo uma rima. Do you remember when things were really hummin’. Hummin’ não rima com o Verão [Summer], a frase não termina num ponto de interrogação...”

O livro de George — chamemos-lhe assim —, o rapaz que perdeu a mãe de repente, existe em paralelo com o livro de um pintor quase desconhecido do século XV, autor de frescos, Francesco del Cossa. Um e outro livro existem separadamente, mas com referências mútuas. Podem ler-se em separado ou como um único romance que vai fornecendo ao leitor as ferramentas da própria leitura, desafiando o tal conceito de tempo ficcional enquanto sucessão de episódios que cumprem uma função poética, moral, ética, estética, ou seja, com consequência.

Contista, dramaturga, poeta, crítica literária, ensaísta, Ali Smith destaca-se pelos seus romances, sete até ao momento, dos quais quatro — a contar com o recente Outono — estão editados e Portugal (O Passado É Um País Estrangeiro, Quetzal, 2013; Qualquer Coisa como, Quetzal 2012 e A Metamorfose do Amor, Teorema, 2008). Há ainda os livros de contos Amor Livre e A Primeira Pessoa — publicados em 2011 pela Quetzal. Há quase dez anos que podemos lê-la em português, mas nunca conseguiu por cá a notoriedade que adveio de ser uma das mais brilhantes e originais autoras das letras contemporâneas, exímia manipuladora da língua inglesa, vencedora e finalista de alguns dos prémios literários mais prestigiados. Sobre ela, o escritor irlandês Sebastian Barry disse ser uma das mais fortes candidatas a um Nobel da sua geração. Esquiva, dona de uma ironia que pode ser entendida como meio ácida, abertamente homossexual, é professora em Cambrigde, onde vive com a sua companheira de há mais de vinte anos, a artista Sarah Wood. 

“O mundo existe. As histórias são inventadas”, diz uma das personagens de Outono, que ensina outra a ler o mundo e a perceber que tanto na literatura como na realidade o conceito de casa ou de hospitalidade pertencem a uma ordem próxima do sagrado. Fazem parte do que se entende por humanismo. Nos seus romances e nos contos, Ali Smith parece trabalhar nesse território, a linha fina que separa e une real e ficção, entregando-se, nesse processo, com enorme generosidade: está inteira na sua arte. As suas personagens, como Daniel ou Elisabeth, de Outono, são seres no tempo, e por isso frágeis, fugazes, trágicos, alegres, amantes, desencontrados. Um dia, como todos nós, apagam-se, e nessa inevitável banalidade e finitude são universais, intemporais, ou seja, humanos. Somos um círculo e a história é circular, parece andar sempre a dizer-nos a escritora. No limite, com cada uma dessas personagens consegue aquilo que a arte aspira — ou Ali aspira na sua arte —, que o tempo deixe de existir ou de se sentir por completo.  

O jogo parece complexo, mas basta ler poucas frases de Ali Smith para que a conclusão seja a inversa. Tudo parece fluir, como numa melodia, num namoro assumido com a poesia, a música, a pintura. Talvez um pintor esteja mais próximo dessa possibilidade: “pintores andando pelo seu mundo com as ferramentas da pintura do seu tempo”, escreve em How to Be Both. Enquanto escreve sobre o banal humano, as narrativas de Smith são quase sempre uma reflexão profunda e comovente sobre a natureza da arte, a sua produção e as suas manifestações. Uma dessas funções, ou missões, é ver o que está diante dos olhos. O artista, o romancista, deve tentar furar essa espécie de impossível. “Vê como está tão profundamente enraizado na nossa natureza animal, disse Daniel. Não vermos o que está a acontecer diante dos nossos olhos”, lê-se em Outono, o primeiro de quatro romances que se propõem trazer este tempo, o presente, para a literatura, ter a marca desta contemporaneidade. Para Ali Smith, esse olhar sobre o agora é um modo de tentar ultrapassar o abominável. Isso é sempre o papel da arte: a manifestação elevada do humano, de tornar a verdade melhor.

É, pois, nosso privilégio ter dois romances de Ali Smith em Portugal no mesmo ano e dois seus mais poderosos trabalhos literários. Outono está aí. How to Be Both virá justamente no Outono.

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