“Escrever é uma coisa lenta e não há atalhos”

Os livros são os narradores do romance de Zoran Zivkovic. São vozes femininas a reclamar pelo direito a uma existência digna num discurso que muitas vezes se aproxima do feminista. É o livro enquanto indivíduo numa sátira que questiona também o papel do criação.

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Zoran Zivkovic, sérvio, 67 anos, professor de escrita criativa na universidade de Belgrado, é autor de 21 livros de ficção. Seis estão editados em Portugal e têm um tema comum: uma reflexão sobre o livro Nuno Ferreira Santos

Zoran Zivkovic, sérvio, 67 anos, professor de escrita criativa na universidade de Belgrado, é autor de 21 livros de ficção. Seis estão editados em Portugal e têm um tema comum: uma reflexão sobre o livro. Desde o acto criativo ao seu papel civilizacional. O negócio ou o papel do leitor. O livro enquanto culto e objecto transformador. E em tudo isto uma espécie de contágio ou proximidade com a escrita de Jorge Luis Borges. O seu romance A Biblioteca chegou ao mercado português em 2012 e faz parte do Plano Nacional de Leitura. Agora publicou O Livro, prosa ficcional próxima do ensaio em que os narradores são livros a confrontar os humanos com modo como os tratam. Escrito em 1999, foi a reacção de Zivkovic ao conflito na Sérvia e a um olhar pessimista sobre o futuro do livro impresso. “Somos uma espécie ameaçada”, lê-se logo no início do o escritor considera uma sátira construída sobre um sentimento trágico. Diz-se mais optimista. Nunca tanta gente quis ser escritor, nunca se imprimiram tantos livros, mas e os leitores? É a pergunta que atravessa a conversa com Zoran Zivkovic na sua terceira visita a Lisboa. 

Este livro nasceu na guerra. No posfácio a esta edição escreve: “A uma tragédia respondi com uma comédia.”
Sim. As circunstâncias foram muito peculiares. Foi quase todo escrito na primavera de 1999. Estávamos em guerra na Sérvia e havia bombardeamentos a toda a hora. Comecei a escrever o livro como uma espécie de reacção vital. Quis opor-me à guerra e à destruição com o humor. 

Se tivesse de definir este livro…
Diria que é muito melancólico sobre um assunto triste, escrito de forma humorística. É sobre a última fase do livro impresso e a sua substituição pela versão digital.

No caso, o CD-ROM.
Que era então a tecnologia de ponta. Se o tivesse escrito hoje seria outra, como também digo no posfácio da edição portuguesa. Discuti com o meu editor italiano. Ele não quis que eu incluísse um posfácio como este, e insistia em que eu alterasse o final do livro, substituindo o CD-ROM pelo e-book. Imagine que eu faria isso! Com a aceleração do progresso teria de passar o resto da minha vida a escrever finais diferentes. As circunstâncias que me levaram a escrevê-lo não se vão repetir. Mas é um livro humorístico e se há grande desafio em escrever literatura o maior é escrevê-la de forma cómica. Saramago poderia dizer-lhe muito mais acerca disso do que eu. Dificilmente pode surgir um tema tão sombrio quanto o de Ensaio Sobre a Cegueira, o mundo a desintegrar-se e o grande mestre a encontrar formas de incluir elementos cómicos. Quase senti má consciência por rir ali, era como se ao rir estivesse a trair as pessoas que habitavam o livro. Foi a magia de Saramago que me fez rir. Dou a ler aos meus estudantes excertos de Saramago para lhes mostrar como devem lidar com esse desafio do cómico.

No início do livro há uma pergunta retórica: “Sem livros qual seria a condição da raça humana?”
Eles são o repositório do que sabemos. Vivemos a maior parte das nossas vidas muito abaixo do nosso potencial. Não somos capazes de ser sábios 24 horas por dia. A produção rara que resulta desses momentos deve ser salva para a posteridade. Os livros são o repositório da nossa sabedoria, a essência do que conquistamos.

E aqui são humanizados e apresentado como pertencentes ao género feminino, com a metáfora do feminino a servir o modo como constrói a narrativa.  
A palavra eslava para ‘livro’ é feminina, ao contrário do que acontece nas línguas românicas em que o livro é do género masculino. Na minha história o livro é feminino e todos os humanos são masculinos. Acho que isso é algo que se perde nas traduções. 

“Existem, contudo, algumas semelhanças entre homens e livros, no que diz respeito à continuação da espécie. Em ambos, o motivo é, em grande medida, instintivo.” Há momentos de encontro.
São os momentos em que os homens têm um comportamento associado ao feminino. É a parte agradável de ser humano.

O discurso do livro entronca no discurso feminista. “Na sociedade, éramos equivalentes às mulheres uma posição.“ E logo a seguir: “O nosso primeiro dever” diz o livro – “era dar-lhes prazer”.  
Optar pela voz feminina foi intencional nessa denúncia de maus tratos de que os livros se sentes alvos.

Não temeu cair na caricatura fácil?
Como se lê no início, os são uma de duas criaturas inteligentes que existem no planeta e interrogam-se acerca se os humanos são realmente inteligentes. Eles são capazes de ter a gentileza de dizer: “Se são tão inteligentes, vejam o que nos estão a fazer!” 

Compara o modo como tratamos os livros a uma tendência humana para a auto-destruição. Incluindo actos aparentemente tão comezinhos como sublinhar frases. Nunca sublinhou um livro?
Nunca. Nem isso nem dobrar páginas. Sou aqui uma espécie de meio através do qual eles dizem: “vejam como nos estão a tratar.” É uma espécie de violação, abuso. Voltamos sempre ao feminino, como quando eles, os livros, comparam as grandes bibliotecas a casas de passe, onde as pessoas os alugam e usam para depois os devolverem. São prostitutas para o leitor. Como vê, é-me muito conveniente que a palavra ‘livro’ na Sérvia seja feminina. São mulheres oprimidas.

E põe em causa o papel do autor, editor, crítico, leitor, bibliotecário, coleccionador, do vendedor…
De toda a gente, o gang completo. Conheço o negócio do livro, durante algum tempo também fui editor. Tento apresentá-lo como uma sátira.

Quais são as suas obsessões como leitor?
Há sempre um paradoxo em mim enquanto leitor. Quando comecei a escrever o meu primeiro livro, em 1993, senti uma espécie de separação de personalidade. Era ao mesmo tempo um leitor muito interessado e muito impaciente em relação ao que ia acontecer. Isto passa-se a um nível muito inconsciente. Eu não sabia o que ia escrever. Quando como comecei senti apenas uma enorme pressão para o fazer. Escrevia e uma parte da minha personalidade era a de um leitor impaciente e outra um escritor lento. Confesso com alguma vergonha que uso apenas este meu dedo indicador direito para escrever. Está deformado. Escrevi só com ele centenas de milhares de páginas. Mas isso também é muito conveniente, porque a velocidade a que consigo escrever com um dedo corresponde à velocidade a que as frases se formam na minha cabeça. O indivíduo que se queixa da velocidade dessa escrita é o leitor que há em mim. E por vezes a outra parte é sádica e diz ao leitor que ele deve sofrer, porque escrever não é uma coisa que possa ser feita depressa. Quando escrevo a minha concentração é total; comparo-a à de um jogador de xadrez. No fim desse tempo se tiver uma página ou uma página e meia fico muito feliz. Escrever é uma coisa lenta e não há atalhos. O tempo que invisto a escrever um romance vai de nove meses a um ano e esse livro, com um leitor devoto, pode ser lido em poucos dias. Queixo-me de que isso não é justo, mas um amigo meu lembrou-me que todo o tempo que todos os leitores dedicam a esse livro na sua totalidade é muito mais do que o tempo que posso investir. Então o mundo passa a ser tremendamente justo.

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Nuno Ferreira Santos

O narrador deste romance é um livro bom, um livro de qualidade. Imaginemos que seria um livro mau.
Teria de encontrar algumas desculpas. Idealizei um tipo de livros, a aristocracia dos livros. E eles falam desde essa perspectiva. Os maus livros foram escritos pelos homens. Os bons e os maus livros são um reflexo do que os homens são. Mas nós, os grandes livros, somos o melhor do que vocês, homens, são capazes de produzir.

E estamos sempre a ser confrontados com a nossa experiência enquanto leitores. 
Há momentos em que os livros também são nostálgicos em relação a isso. Já não têm o leitor devoto que costumavam ter noutro tempo em que os livros eram realmente o que deveriam ser. Algo para ser lido, pensado, relido.

E lança a provocação através de um deles, de que a leitura não é uma arte.
Vou-me citar aqui no que digo aos meus alunos. O melhor curso possível de escrita criativa é a leitura criativa. Gastem um verão a ler a totalidade dos contos de Tchekov. Tudo o que é possível aprender sobre a arte da escrita criativa está contido nesses livros. Se querem saber como se escrevem histórias está lá tudo, mas para isso é preciso ser-se um leitor criativo. Ler a grande literatura é uma coisa muito séria. Se querem apenas divertirem-se leiam o chamado produto da indústria editorial. Não estamos a falar disso. Quando a ficção científica apareceu e começou a ter muitos adeptos uma certa elites veio acusar o género de ser mau; dizia-se que 95 por cento dos livros de ficção científica eram lixo. Essa percentagem aplica-se a tudo. Noventa por cento do que se escreve é mau. Quando digo literatura, falo dos cinco por cento que estão no topo. Na primeira aula digo ainda aos meus alunos que não devem esperar ser leitores antes dos 50 anos. Isso não significa até lá possam descansar. Até lá têm trinta anos para ler e reler. Não há milagres na arte da escrita. Ou então pode-se ser um génio, mas isso são as excepções. Pode-se escrever algo que se acha ser absolutamente novo e achar que se é um génio e depois descobrir que isso foi feito 200 anos antes. Como não lemos achamos que estamos a ser originais. É preciso ler. Qualquer aspirante a escritor tem de ler muito. A vida de um escritor é uma vida de leitor. São inseparáveis. Somos muitos privilegiados por viver num tempo em que continua a ser muito favorável aos livros. Nunca se imprimiram tantos livros quanto hoje, há muita gente a escrever e muita gente a querer fazê-lo, de tal forma que o número de escritores pode ultrapassar o número de leitores. Podemos, por hipótese perder os leitores. Toda a gente parece querer escrever livros.

Porque acha que isso acontece?
Talvez porque escrever, tecnicamente falando, é a arte mais barata. Basta um cadernos e um lápis. O Tolstoi não tinha mais do que isso. Depois a mulher passava-lhe aquilo a limpo cinco vezes. A minha questão é a de saber se daqui a anos as pessoas estarão a ler. O mundo digital não é o inimigo maior dos livros, mas o modo de vida. 

Que explicações lhe dão os seus alunos para quererem ser escritores?
Na primeira aula há cerca de 50 alunos e eu só posso ficar com 20. Eles escrevem uma história, eu leio-a, faço os meus comentários e depois o texto é lido em voz alta, corrigido, comentado e é perante esse texto vivo que lhes digo tudo o que tenho para dizer sobe aquele pedaço de escrita. A questão básica, fundamental é: posso realmente transformar alguém que é um aspirante num escritor? Digo-lhes que não sou capaz. Na literatura, como no canto, se eu tiver uma voz mesmo muito ténue, ínfima, e for trabalhada pode ter óptimos resultados. Se não tivermos uma voz literária não há nada que um professor de escrita criativa possa fazer. Mas uma voz mesmo ténue é fácil de reconhecer. Mas é preciso trabalho. Não ensino ninguém a escrever, mas posso ensinar o que não devem fazer se quiserem escrever.

Fala da relação do leitor com o livro enquanto objecto. Como descreve a sua?
Muito íntima, é quase erótica. É o cheiro, o toque… Levo-o para a cama. Abro-me completamente para um livro e o livro faz o mesmo comigo. E isso é com o livro impresso. Não consigo imaginar essa relação com um computador. Há alguma estranheza qualquer me me assusta. Tenho medo do que possa estar para lá do ecrã, todo o processo que rodeia a internet coloca-nos numa espécie de vigilância ou alerta permanente que o livro em papel dispensa. Ali só estou eu e o livro e nessa relação há um prazer muito específico.

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