Escorre sangue (ou será ketchup?) na Culturgest

Em mais um capítulo da parceria da companhia Cão Solteiro com o realizador André Godinho, teatro e cinema voltam a dialogar na Culturgest, em Lisboa. We’re Gonna Be Alright parte da exploração dos efeitos especiais e promete sangue, violência e sexo.

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We’re Gonna Be Alright parte do universo dos blockbusters e, por isso, promete violência, sangue, sexo, ingredientes habituais do cinema carregado de acção e que usa cada truque no manual para manter o público a salivar JOANA DILÃO

Há três anos, em Day for Night, nesta mesma sala da Culturgest, Cão Solteiro e André Godinho continuavam a partilhar a sua investigação em curso sobre as relações entre teatro e cinema com uma ideia que partira do anterior Play, the Film (2011). E podia explicar-se assim: tomar em mãos os tempos mortos das rodagens de um filme e promovê-los a centro nevrálgico de um espectáculo. O palco foi então transformado em estúdio de cinema e a rodagem foi alvo de um acto teatral. Em cena, verdadeiros técnicos, actores que interpretavam técnicos e um realizador que era mesmo André Godinho. E ao caminharem num frágil equilíbrio por cima da linha de transição entre ficção e realidade, assumindo a intenção de rodar de facto um filme daquilo que passava em palco, o público divertia-se e ria-se do anúncio sério de que era necessário silêncio para que a rodagem pudesse ter lugar.

Natural consequência de uma postura em cena que Paula Sá Nogueira, actriz e fundadora do Cão Solteiro, descreve como um “escolha você mesmo”, em que a verdade e a mentira ficam ao critério dos espectadores, esta tentativa de levar o cinema para o lugar do teatro levava a que a encenação e a mentira esmagassem o esforço de verosimilhança e simulacro da realidade de que o cinema mais vezes se ocupa. A cada novo pedido de silêncio por parte dos actores e dos técnicos, mais a descrença na situação se instalava entre o público, mais o ruído imperava e a sabotagem daquele momento obrigava cada uma das takes a ser atirada para o lixo. “Quanto mais tentávamos explicar que aquilo era verdadeiro”, resume André, “mais as pessoas acreditavam que era falso.” “Porque o público estava na convenção do teatro”, justifica Paula. Se acontecia em cima de um palco e naquele instante, só poderia ser teatro – o cinema seria sempre uma fraude.

Avançamos três anos, para o presente, e aquele mesmo palco lisboeta volta a acolher (de 7 a 10 de Setembro) um diálogo entre teatro e cinema empreendido pela parceria de Cão Solteiro e André Godinho. O paradigma agora é, naturalmente, outro. We’re Gonna Be Alright parte do universo dos blockbusters e, por isso, promete violência, sangue, sexo, todos os ingredientes habituais do cinema carregado de acção e que usa cada truque no manual do circuito mainstream para manter o público a salivar na cadeira. “Partimos para algo em torno do que as pessoas supostamente gostam de ver quando vão ao cinema dito comercial”, diz o realizador. “E então decidimos construir todo o espectáculo a partir desses elementos.” Esta noção daquilo que “as pessoas gostam de ver” incide depois sobre uma sequência de cenas reconhecíveis, porque o imaginário de qualquer espectador está já profusamente povoado por estes códigos.

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Como um plano de um filme de época num palácio da aristocracia europeia ou uma cena de porradaria que termina com alguém a cuspir sangue e dentes partidos numa casa de banho. Só que, tratando-se de blockbusters, este universo está repleto de efeitos especiais. E é essa a base de trabalho para We’re Gonna Be Alright: o confronto permanente de uma mesma cena tipo, previamente filmada, montada e exibida numa tela e de acordo com os recursos artificiosos do cinema, e a sua reprodução em palco pelas mesmas actrizes, pondo a nu a fabricação de cada um dos efeitos em questão.

Assim, quando vemos Crista Alfaiate na pele de membro da realeza ou de qualquer outra figura proeminente de uma corte cheia de segredos de alcova, de rosto alvo e uma ornamentada gola de canudinhos, quando a vemos ser degolada no grande ecrã, vemo-la também no palco, com o cenário reduzido àquilo que é essencial à cena, trocando a majestosidade por uma pragmática e pouco onerosa reprodução de um palácio que é, afinal, pouco mais do que um pequeno rectângulo de madeira. Da mesma forma que quando vemos a mesma actriz ser violentamente abalroada por um carro, descobriremos na sala como é que a ilusão do embate é engendrada. “E se tivéssemos mais dinheiro e mais meios seriam explosões e perseguições de carro e coisas do género”, dizem.

Ao ausentar We’re Gonna Be Alright de qualquer veleidade narrativa, Cão Solteiro e André Godinho isolam os efeitos, pondo de pé um espectáculo sem texto teatral e que, acredita Paula, “em princípio será um espectáculo que deve agradar”. Mas ri-se da sua própria declaração, ao partir deste exercício de adivinhação daquilo que será da preferência do público. Porque ao trazer violência e sangue, sexo e esperma para o palco, sem o demais contexto (por mínimo que seja) que qualquer filme oferece, aponta a uma citação do autor inglês Will Self em que este declara a perplexidade perante a extrema violência – “Disse a mim mesmo um milhar de vezes para não me chocar novamente perante aquilo que as pessoas fazem para se divertirem, por razões que não sabem explicar”. A narrativa, a existir uma, é exactamente a da disseminação da violência pelos ecrãs e o quanto o espalhafato de um efeito pretende, afinal, sugerir realismo.

Truques de magia

Não é preciso esgravatar-se muito na cultura cinematográfica para nos depararmos com a popular suspension of disbelief – qualquer coisa como a suspensão da descrença, ou como o simples facto de alguém se sentar numa sala de cinema estabelece de imediato o contrato de que estará na disposição de acreditar sem grande resistência em tudo quanto lhe possam pôr à frente. Em We’re Gonna Be Alright – um duplo aceno aos finais felizes de qualquer blockbuster e sobretudo à ausência de reais consequências de qualquer sugestão de agressividade ou violência no espectáculo –, mais uma vez, esse contrato é colocado à consideração do espectador. Na hesitação entre o cinema e o teatro, no constante balancear entre as duas linguagens em que mandam à vez ou disputam o olhar em simultâneo, os efeitos podem ser facilmente varridos para o lado da mentira e da manipulação, mas é quase inevitável ter de lidar com uma vontade genuína de querer acreditar em algo que é manifestamente falso.

E André Godinho usa como exemplo para isto mesmo o de um técnico da Culturgest que, numa certa cena em que uma perna sofre um golpe, mesmo sabendo que essa perna é do mais fajuto que pode haver, se arrepia de cada vez que vê os efeitos dessa violência controlada e sem risco algum. Está sempre presente “esse jogo entre aquilo que sabemos que é falso mas que sentimos que nos enoja ou nos impressiona, em que não há qualquer explicação racional para uma coisa que acabámos de ver que não é verdadeira continuar a produzir esse efeito”. “De certa maneira”, argumenta André, “é como desvendar um truque de magia antes de o fazermos, mas depois ficarmos ainda assim impressionados com o truque.”

Tal espécie de autópsia aos segredos dos efeitos especiais ajuda a explicar a expressão blockbusted que surge nos textos de apresentação de We’re Gonna Be Alright e desvenda um certo prazer com a exposição dos efeitos, nunca sabendo se essa desconstrução contribuirá para roubar alguma capacidade de chocar e emocionar ou, pelo contrário, para testar a insistência em dar-lhes crédito. E embora Paula Sá Nogueira aponte o dedo a “um baixo nível de discurso crítico, em que aquilo que se exige [a um blockbuster] é apenas a execução crível de uma perseguição ou de uma morte”, recusa qualquer “pretensão moralista” que olhe com desdém para este cinema a partir de um lugar de superioridade.

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“O que é para mim preocupante”, acrescenta, “é que toda esta extrema violência seja um grande entretém e provoque uma grande excitação.” E recorre ao exemplo de um documentário de stand-up comedy a que assistiu e que esmiuçava a fórmula a seguir para que piadas tão pouco risíveis quanto aquelas que envolvam a morte de uma criança possam ser preparadas, descansando o público relativamente à sua consciência, lançadas apenas no momento em que consigam provocar nos espectadores o mesmo riso desbragado que teriam se assistissem a alguém a escorregar numa casca de banana. “Nessa altura já não há problema, estão ilibados, não é grave nem são más pessoas, é apenas humor.”

Em We’re Gonna Be Alright deita-se fora qualquer tipo de preparação para a violência, mas mostra-se também quão falsificada ela pode ser. E põe-se de pé um espectáculo que promete ser feito com os elementos certos para agradar mas que, ainda assim, pode não o fazer. “Só prometemos que usamos as coisas para agradar às pessoas”, dizem. Ou seja, e mais uma vez, porrada, sangue, sexo estão garantidos. Mas sem qualquer factor atenuante, sem qualquer ligação emocional a personagens, sem qualquer desculpa construída para cada clímax, pode ser que reste apenas o grotesco e as dúvidas sobre a necessidade de recorrer a estes momentos estudados e repetidos à exaustão. E dá que pensar o que seria de um blockbuster se evitasse estes apeadeiros obrigatórios. Talvez os olhares tivessem de adivinhar mais e a haver mais cinema nas entrelinhas.

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