Epístolas segundo os amantes

Neste romance epistolar entre dois amantes separados pela distância e pelo tempo, esboça-se a cartografia da nossa solidão.

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Feroz crítico da governação de Putin, Mikhail Chichkin vive há muitos anos longe do seu país

Mikhail Chichkin (n. 1961) recebeu já os três maiores prémios literários russos e é considerado por muitos estudiosos um dos maiores romancistas vivos do país. Vive em Zurique desde 1995, e é um feroz crítico do governo de Putin: há alguns anos recusou-se a representar a Rússia numa feira do livro em Nova Iorque pois, como disse numa carta aberta, não queria estar presente em nome de um país onde “o poder foi tomado por um regime corrupto e criminoso, onde as eleições são uma mentira, os tribunais defendem as autoridades, e a televisão é uma prostituta”. Até agora os seus livros estavam inéditos por cá.

Cartas de Amor e de Guerra é um romance epistolar entre dois amantes (Vladimir e Aleksandra) separados no espaço (ele, soldado numa guerra na China, ela a trabalhar em São Petersburgo), mas também no tempo (ela está algumas décadas adiante)­ — esta é uma das fascinantes singularidades deste romance (um pouco na linha do pós-modernismo russo de autores como Viktor Pelevin ou mesmo de Vladimir Sorokin). Aqui se trocam cartas de amor em que ambos evocam lembranças de sonhos e de pesadelos, da infância, dos primeiros encontros entre os dois, das famílias, do trabalho quotidiano, das férias na datcha (casa de campo), de rios e de cidades. É uma narrativa labiríntica que se vai construindo num vaivém contínuo de recordações de ambos os corpos, de memórias dos sentidos, sobretudo do tacto e do olfacto. “E os cheiros do jardim! Tão densos, tão fortes, como partículas que saturassem o ar. Era deitá-los numa chávena em vez de chá.”

São cartas ternas e por vezes brutais (sobretudo as dele, que combate “com umas cuecas do Estado que picam”) que aos poucos, e de uma maneira quase subtil, se vão ligando num passado muito brevemente vivido pelos dois. As missivas dele, apesar de tudo, são mais viradas para descrições e considerações sobre o atoleiro (soldados, sangue, doenças) em que está enfiado no presente em que as escreve, mas também mais filosóficas: “Precisava de vir até aqui para compreender coisas simples.” O soldado, culto e literato, faz por vezes referências (nem sempre veladas) a obras ou autores como Hamlet, Stendhal ou o Evangelho Segundo João. As suas considerações, porque muitas vezes extravasam as próprias missivas, são sobretudo um piscar de olho ao leitor. “Pensei que todos os grandes livros e os grandes quadros não são sobre o amor. Apenas fingem ser sobre o amor, para que seja interessante lê-los. Mas na realidade são sobre a morte.” Ou ainda: “Para nos tornarmos autênticos é necessário existir não na nossa consciência, que é tão insegura (…) mas na consciência de outra pessoa. E não simplesmente de uma pessoa qualquer, mas da pessoa para quem é importante saber que nós existimos.”

As cartas deste romance de Chichkin parecem convergir numa descrição do mundo, como se nelas ele se reflectisse inteiro, e isto muito à maneira das histórias do reino fantástico, medieval e mitológico, do Prestes João (“senhor dos senhores, rei dos reis, soberano dos soberanos”) que é, aliás, referido nas mesmas. Num périplo com momentos bastante poéticos, a escrita de Chichkin insinua e esconde, exagera e retrai-se, mostra-se para logo depois mudar de registo. “Em comparação com a nossa felicidade, a morte parece uma ninharia.” O autor consegue aguentar com mão de mestre uma narrativa que por vezes se aproxima perigosamente do abismo, de onde ele a salva sempre, sobretudo nos momentos em que a realidade parece começar a confundir-nos. “O que é real é aquela primeira vez em que eu estive no teu apartamento, fui à casa de banho para lavar as mãos, vi ali a tua esponja e senti intensamente que ela tocava no teu seio.” Cartas de Amor e de Guerra é uma espécie de esboço da cartografia da nossa solidão, em todos os tempos.

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