Entrar até é fácil, sair é mais difícil

A exposição White Noise abre a programação do QUARCO – Quartel de Arte Contemporânea de Abrantes/Colecção Figueiredo Ribeiro. António Júlio Duarte guia-nos pelas antecâmaras dos casinos de Macau, lugares sonâmbulos, sem noite e sem dia.

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Na exposição António Júlio Duarte procurou outra lógica narrativa para as imagens — captadas em lobbies, corredores, átrios, zonas de descanso e casas-de-banho de casinos de Macau ao longo de cinco anos — que estavam em White Noise, livro editado António Júlio Duarte, cortesia Galeria Pedro Alfacinha, Lisboa
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António Júlio Duarte, cortesia Galeria Pedro Alfacinha, Lisboa

À entrada para a exposição White Noise, a imagem flashada de uma estatueta a imitar a cobra-real em posição de ataque diz-nos logo ao que vamos. Funciona como uma ferroada visual de brilho, deslumbre, opulência e simbolismo ardiloso, tudo sinais do que vamos encontrar nas outras 35 imagens que António Júlio Duarte captou em lobbies, corredores, átrios, zonas de descanso e casas de banho de casinos de Macau em várias viagens ao território, ao longo de cinco anos. É essa cobra que abre o livro White Noise, editado pela Pierre von Kleist em 2011, e as coincidências mais óbvias acabam aqui.

Na exposição que inaugura a programação do QUARCO — Quartel de Arte Contemporânea de Abrantes/Colecção Figueiredo Ribeiro, António Júlio Duarte (Lisboa, 1965) não procurou imagens novas daquele trabalho, deu-lhe antes outra lógica narrativa e outra escala para concretizar o segundo momento de vida com que sempre imaginou White Noise, um dos trabalhos que mais “gozo” lhe deu fazer nos últimos anos.

No meio de insónias, passou noites inteiras a circular por espaços labirínticos dos templos de jogo macaenses armado não só de uma câmara fotográfica e flash mas também de uma espécie de sexto sentido: o zumbido contínuo que se instala quando rareiam as horas de sono, um estado de encantamento e relaxe que o sintonizou na descoberta de recantos, objectos raros, obras de arte, materiais brilhantes e formas confusas num mundo concebido para nos seduzir, idealizado ao milímetro para nos impelir a ficar. É um trabalho sobre “a alienação e os espaços sonâmbulos”, diz o fotógrafo ao Ípsilon, olhando para a maqueta da exposição, que ocupa metade de uma longa mesa de madeira.

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António Júlio Duarte, cortesia Galeria Pedro Alfacinha, Lisboa

Porém, apesar de todo o estudo e maquetas que possa fazer, António Júlio é um fotógrafo que não decide por antecipação, nem antes de sentir o que lhe “pede” um determinado espaço. E de perceber, no local, a maneira como as imagens (e tudo o que fazem delas objectos impositivos, pouco maleáveis) se podem “dobrar” às condições do espaço, e não o contrário. “Não gosto de forçar um lugar a receber trabalhos para os quais não está preparado. É preciso entrar em diálogo com aquilo que existe, com as paredes, com a luz.”

Para um lugar que já conhecia de outras andanças (foi a partir daquele antigo quartel de bombeiros que realizou a série com que concorreu ao prémio BES Photo de 2004), António Júlio Duarte idealizou pequenos núcleos com familiaridades temáticas (relíquias dentro de vitrinas, espaços de lazer e descanso...) e isolou imagens com algum tipo de singularidade, como é o caso da que mostra o Casino Venetian, de fachadas hiperiluminadas a irradiar um clarão ofuscante (e a transformar a noite em dia), a única fotografia do exterior.

Fazer outra coisa a partir da mesma coisa parece um desafio simples. Mas este trabalho de seriação, de ampliação de (re)organização de imagens em diferentes salas, obrigou o fotógrafo a voltar à estaca zero. Aliás, só assim “faria sentido” regressar a White Noise. Opções do tipo transposição directa de um suporte para outro podem correr muito mal, e António Júlio Duarte já as viu acontecer. Por exemplo, numa exposição de Philip-Lorca DiCorcia, no Centro de Artes Visuais em Coimbra, em 2005, quando se reproduziu desastradamente, na sua opinião, a mesma lógica narrativa do livro A Storybook Life (Twin Palms Publishers, 2003).

Consciente desta armadilha (e de outras), quis repensar tudo: “É um desafio passar um livro para a parede — é preciso pensar outra vez na escala das imagens, na sequenciação, é preciso mudar tudo. Temos de reinterpretar e de fazer um raciocínio inverso ao que se fez para o livro, onde as imagens são apreendidas numa linguagem tipográfica. Quando se tem o livro já feito, é preciso regressar outra vez ao registo da prova fotográfica. E essa revisão obrigou-me, por exemplo, a olhar novamente para a cor das imagens.”

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António Júlio Duarte, cortesia Galeria Pedro Alfacinha, Lisboa

Deixar entrar luz

Contrariando o lado circular, algo monocórdico, escuro e fechado de White Noise versão livro, no Quartel de Abrantes António Júlio Duarte sentiu que tinha de abrir as cortinas de grandes portas e janelas para deixar entrar luz natural, de jogar com ela de maneira a “provocar” o próprio conteúdo das imagens, cheias de tudo quanto é artificial, com ambientes saturados. É uma opção que não só se distancia do livro mas que faz uma antítese ao lado cénico de uma das suas últimas grandes exposições também sobre Macau, Mercúrio, apresentada na Galeria Zé dos Bois, em 2015, onde reinava a escuridão. Agora, algo muito diferente: “O espaço [do Quartel] foi inundado de luz, que é o contrário do que aconteceu em Mercúrio, onde só se viam as imagens no meio de paredes negras. Tentei replicar a experiência que tinha tido a fotografar em Macau, onde é tudo muito claustrofóbico. O que aconteceu é que White Noise acabou por se tornar o ‘positivo’ de Mercúrio.” De resto, as diferenças entre os dois trabalhos não são apenas de desenho expositivo, apesar de uma grande familiaridade de conteúdo: “Trata-se do mesmo espaço geográfico, mas para mim é um trabalho totalmente diferente. Por um lado, tem que ver com o acto de fotografar; por outro, com a minha experiência. Mercúrio resulta de uma visão mais imediata e intensa de Macau. White Noise foi sendo construído ao longo de cinco anos.”

E, já que falamos em tempo, o que dizer de uma exposição que surge seis anos depois da publicação de um livro sobre o mesmo trabalho? Avesso à velocidade furiosa em que circula o mercado da arte, à pressão para “produzir, produzir, mostrar, mostrar”, António Júlio Duarte acha que “faz todo o sentido” imprimir agora as 36 provas fotográficas que já foram estampadas em White Noise (aquele que António Júlio considera o seu primeiro fotolivro “com cabeça tronco e membros”). Com toda a calma do mundo, como se soubesse desde sempre que a exposição iria acontecer, responde: “Não acho que tenha vindo tarde. Chegou quando tinha de chegar. Este trabalho ainda é novo. Seis anos não é muito tempo.” Mas reage com mais prontidão se se disser que se trata de um resgate, de uma “ressurreição” de uma série adormecida. “Não é.” Até porque White Noise “era um trabalho que estava por fechar”, à espera de ser mostrado na totalidade, de uma forma nunca vista. As condições para o fazer chegaram agora, e o fotógrafo não hesitou. “Foi o coleccionador [Fernando Figueiredo Ribeiro] que quis fazer a exposição. Ele gosta do trabalho, mas o facto de nunca ter sido mostrado no seu conjunto também pesou. O espaço do Quartel é ideal. E não acontece todos os dias termos a possibilidade de expor 36 fotografias de 1x1 metros.”

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António Júlio Duarte, cortesia Galeria Pedro Alfacinha, Lisboa

Com a exposição em Abrantes, há um círculo que se fecha. Até porque “a frequência” encontrada para realizar esta série não é facilmente replicável. “White Noise talvez seja dos meus trabalhos mais precisos. As primeiras imagens surgiram dentro de outro trabalho, mas percebi que tinha de o continuar. Em todas as viagens posteriores já sabia o que ia fazer e como. Tentei replicar as condições em que tinham acontecido as primeiras, a procura de espaços labirínticos, a falta de sono. Foi um trabalho que apareceu e se impôs.”

Para além de procurar transmitir uma sintonia muito própria na sua relação com estes espaços de jogo, António Júlio revela um universo tipológico de lugares muito particular, onde reina a sedução (há dinheiro a voar em tubos quando se abre a torneira do lavatório da casa de banho), a ostentação e uma enorme carga simbólica. “São espaços muito codificados no uso de cores, materiais e símbolos do dinheiro. Nestas mensagens são muito semelhantes, têm um lado labiríntico. Não é que seja difícil sair deles, mas tudo nos convida a ficar. São sítios com um tempo próprio, onde parece não haver noite nem dia.”

António Júlio Duarte, que confessa nunca ter gasto uma moeda numa slot machine, gosta de círculos e de voltar aos mesmos lugares. O percurso que imaginou para White Noise completa-se agora, mas nem por isso acaba a vontade de rumar a oriente: “Gosto de fotografar em espaços que são hipercontemporâneos, cidades que parecem antecipar o que vai acontecer, que parecem estar um passo à nossa frente. Cada vez mais essa diferença é menor, mas quando vou lá ainda me sinto a viajar para o futuro.”

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