Em plena Primavera, há uma Noite de Outono no Rivoli

Luís Mestre escolheu o Outono para começar a sua Tetralogia das Estações. Um actor cansado, que é tanto a personagem como o artista que lhe dá corpo, encontra uma mulher que se atravessa na sua história. A estreia é esta quinta-feira no Teatro Municipal do Porto.

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José Caldeira/Teatro Municipal do Porto
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“Não vou contar tudo esta noite”, avisa desde logo a personagem feminina, encarando de frente o público. “O meu nome é Ana, tenho cerca de 30 anos. Este aqui é o António, muito mais velho que eu”, continua. E assim ficam apresentadas as duas personagens, sem que se perceba como chegaram àquele momento.

O homem mais velho está sentado numa das pontas do palco, descalço, a batalhar freneticamente numa máquina de escrever. Quando termina, pede a Ana (Ana Moreira) que leia o texto e insiste que ela recomece uma e outra vez até que fique perfeito. Nunca chega a ficar.

António (António Durães) é um artista revoltado com a sua arte que, depois de uma “última encenação que correu muito mal”, não consegue arranjar trabalho. “Este homem vê-se encurralado depois da vida artística”, explica Luís Mestre, autor e encenador da peça. “Está numa fase descendente da sua vida”, conta, explicando que também o Outono é um momento “complicado em que as pessoas estão em perda”. Como as árvores que perdem as folhas nesta estação, “Noite de Outono tem a ver com o término da vida dele”, quando o actor começa a perder faculdades criativas e físicas.

É nesta fase da sua vida que António conhece Ana, “que por acaso lhe entra pela casa dentro” e que o público tem de esperar quase até ao final para perceber quem é e como se relaciona com o homem mais velho que parece conhecer tão bem.

Até aí, quem não conhece a história só pode especular a partir do que ouve das conversas íntimas que os dois têm até de madrugada, no chão da casa de António, um caos organizado cheio de livros sobre todos os temas espalhados por todos os cantos e onde se apoiam candeeiros, máquinas de escrever, gira-discos e malas de viagem que já não vão a lado nenhum.

O actor anda por este espaço e a mulher vai-lhe tirando fotografias, numa tentativa de responder ao pedido “estranho” que este lhe fez. “Ele pede-lhe que o testemunhe, que o valide diariamente para perceber que há alguém que está lá, que confirme que ele existe”, explica o encenador. Ao mesmo tempo, sem inicialmente se perceber bem porquê, a mulher jovem serve-lhe de apoio e faz-lhe companhia durante a noite.

Ana vai assim criando um arquivo fotográfico, escrito e oral do tempo que passa em casa de António, para que mais tarde, quando a idade, a doença ou o cansaço vencerem, o actor tenha alguém que continue a contar a sua história.

Luís Mestre compara este registo de memórias com o que “fazemos hoje em dia nas redes sociais”, onde “cada vez mais precisamos de ser testemunhados” para confirmarmos a nossa existência no mundo real.

A peça é constituída por fragmentos que não estão ordenados cronologicamente, dando ao público a escolha do caminho a seguir. “Não queria uma narrativa profundamente linear no espaço e no tempo”, conta. Por isso optou por “uma participação activa” do público, direccionada também pelas próprias vivências de cada membro da audiência. O encenador escolheu falar “de um corpo em fim de vida”, altura em que as coisas são “mais complicadas e lentas” e onde os sacrifícios “enormes” só se aceitam porque o gosto é superior.

O fascínio pela noite tem-se manifestado recorrentemente nas várias peças do dramaturgo. Quando a Noite Cai (2011), Perder a Noite (2011), Numa Certa Noite (2008), e agora as quatro noites das quatro estações revelam a sua atracção pelo “ambiente diferente e pelo tom confessional das horas de madrugada”, admite. Depois do Outono, chegará em 2019 a Primavera, estação que Luís Mestre irá relacionar com “gente jovem”. Ainda falta muito para começar a pensar no Inverno e no Verão.

O dramaturgo escreveu este primeiro texto para os dois actores e talvez por isso António Durães reconheça que, em muitos pontos, o actor mistura-se irremediavelmente com a personagem. “A personagem é aquilo que eu na verdade sou nesta altura”, confessa. O actor e encenador de 56 anos admite estar “cansado” com o estado do teatro português num país que “chuta os artistas para canto”. Ainda consegue encontrar esperança por entre a desilusão e, tal como a personagem que interpreta, admite ter entrado “num ponto de viragem”. Continua “a luta” com esta peça, a primeira de quatro noites, uma para cada estação, que irá estar em cena de quinta-feira a sábado, no Teatro Municipal Rivoli, no Porto.

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