Ele começou a vender livros porta a porta e agora vai doar uma colecção que vale 350 milhões

Dizem os especialistas que é um conjunto excepcional de arte francesa dos séculos XIX e XX. Já esteve exposto no Museu d’Orsay, em Paris, a casa que o vai receber em definitivo depois da morte de Spencer e Marlene Hays, um casal de milionários do Texas.

Foto
Spencer Hays falando no Museu d'Orsay, em Paris, em 2013 AFP/FRANCOIS GUILLOT

É a mais importante doação estrangeira que os museus franceses recebem em 60 anos. Só isto seria notícia, mas se lhe juntarmos o facto de esta colecção de arte ter sido reunida por uma empresário americano que é o protótipo do self-made man, estão reunidos os ingredientes para uma boa história.

A colecção de Spencer e Marlene Hays, ambos com 80 anos, está hoje avaliada em 350 milhões de euros, mas ainda não parou de crescer. Tem 600 obras da segunda metade do século XIX e primeira do XX e entre elas estão representados artistas como Matisse, Degas, Vuillard e Bonnard. Os Hays vão doá-la ao Estado francês e, quando ambos morrerem, ela deverá ser entregue, na sua totalidade, ao Museu d’Orsay, um dos mais importantes de Paris, onde será exposta, em parte, num espaço exclusivo de 900 metros quadrados.

“Esta doação excepcional pelo seu tamanho e coerência é a mais importante que os museus franceses receberam de um benemérito estrangeiro desde 1945”, garantiu na sexta-feira o Ministério da Cultura francês, citado pela Agência France Presse.

Uma primeira doação, que compreende quase 200 obras do acervo dos Hays, que valerão mais de 170 milhões de euros, será formalizada neste sábado à tarde em Paris, na presença do Presidente francês François Hollande. Este primeiro lote mostra, escreve a AFP, a predilecção do casal norte-americano  pela produção dos nabis, artistas de uma corrente pós-impressionista fortemente influenciada pelo simbolismo ancorado no poeta Charles Baudelaire e no seu As Flores do Mal.

Nesta primeira doação estão obras de Pierre Bonnard, Édouard Vuillard e Maurice Denis, mas a colecção também inclui artistas como Henri Matisse, Camille Corot, Amedeo Modigliani, Edgar Degas ou Odilon Redon.

Casados há 60 anos, Spencer e Marlene Hays são uns verdadeiros apaixonados por França e pela sua pintura, partilhando com Guy Cogeval, o presidente do Museu d’Orsay, o gosto pela pintura dos nabis. Escreve a imprensa francesa que, em boa parte, a doação que agora se concretiza se deve à amizade que liga estes multimilionários de Nashville ao historiador de arte e conservador francês, que conheceram em 2001.

A única condição que Spencer Hays – um homem de negócios variados que começou por vender livros de cozinha porta a porta e que os perfis publicados em revistas económicas como a Forbes dizem ser um comunicador nato, habituado a que escrevam mal o seu nome (muitas vezes aparece como Hayes) – e a sua mulher puseram para que França recebesse as obras foi que o museu, instalado numa estação ferroviária e cujo acervo se concentra sobretudo no período entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do seguinte, criasse para elas uma galeria própria, para que o conjunto pudesse manter a sua identidade e a sua coerência.

Com cronologias coincidentes, a colecção dos dois americanos e a do próprio museu podem estabelecer diálogos evidentes. Lembra a AFP, por exemplo, que os Hays têm um painel de Jardins Publics, uma obra de Vuillard composta por nove, e que o D’Orsay tem outros cinco.

Esta afinidade entre os dois acervos ficou bem sublinhada na exposição que o Museu d’Orsay fez em 2013 com parte da colecção Hays e que atraiu 400 mil visitantes, Une Passion Française. Foi nessa altura que, falando à imprensa, o empresário explicou como começaram a comprar obras de arte.

Nascidos em famílias modestas, Spencer e Marlene Hays conheceram-se aos 14 anos em Gainsville e casaram aos 19. “Quando era miúdo eu vivia numa cidade do Texas onde não havia nem arte, nem museus”, disse o coleccionador numa entrevista feita a propósito da exposição de 2013. Pouco a pouco foram construindo os seus negócios e, graças à fortuna que reuniram, tornaram-se autodidactas da história de arte e donos de uma colecção invejável que começou com uma pintura holandesa do século XVII que Marlene quis adquirir e que, na década de 1980, se virou inquestionavelmente para os nabis (palavra de origem hebraica e que quer dizer “profetas”), membros de um grupo de que procurava o carácter “sagrado” da arte.

“Os nabis pintam a família, os amigos, a vida quotidiana. E é isso que nós apreciamos”, afirmou. “Nós adoraríamos saber quem são todas estas personagens, que laços as uniam”, acrescentou Marlene Hays, na mesma ocasião.

Estes pintores começaram por lhes despertar o interesse logo na sua primeira viagem a França, em 1971, escreve o diário Le Parisien. “Começámos, então, a revender os [pintores] americanos para comprar os franceses”, contou Spencer Hays ao jornal. “Os impressionistas erram já demasiado caros, mas os nabis nós podíamos comprar… Eu não jogo golfe, não vou à pesca, não tenho um iate. De manhã à noite eu corro os museus.”

Isabelle Cahn, conservadora-chefe do Museu d’Orsay, justificou, assim, esta doação a um canal de televisão francês: “O grande amor deles é a França, Paris, e por isso quiseram rodear-se de todas estas visões do século XIX, cheias de personagens nos cafés e nos teatros.” Um dos factores que terão determinado a escolha do museu parisiense em detrimento de um americano reside na “inalienabilidade” das colecções do Estado em França – a lei não permite aos museus venderem património, ao contrário do que acontece nos Estados Unidos.

Outra das motivações que deve juntar-se a este aspecto prático, formal, é de ordem emocional: “A primeira coisa que o Spencer faz logo que se levanta quando está em Paris é vir visitar o Museu d’Orsay. Às 9h já cá está dentro.”

O casal, que tem duas filhas e seis netos, vive hoje num grande apartamento em Nova Iorque, rodeado das suas pinturas. Esta doação que agora se formaliza, é preciso lembrar, não é a única prova da sua devoção a Paris – a mansão de Spencer e Marlene Hays em Nashville, no Tennessee, é a réplica fiel de um hotel da Rue Grenelle que lhes é muito especial.

À noite, antes de se deitar, o empresário passa pelo menos 45 minutos a olhar para as suas pinturas. Nunca lhe passou pela cabeça criar um museu com o seu nome nos Estados Unidos simplesmente porque, diz, “isso mostraria muita falta de humildade”.

Sugerir correcção
Comentar