Eduardo Lourenço, conselheiro

Eduardo Lourenço, que aceitou há poucos dias o convite de Marcelo Rebelo de Sousa para integrar o Conselho de Estado, começou o seu percurso intelectual reclamando-se como heterodoxo. Heterodoxia: assim se chamou o seu primeiro livro, publicado em 1949. Seguir “o espírito da heterodoxia” significou um duplo desvio, ou uma dupla “traição”: em relação aos princípios filosófico-ideológicos e estéticos do marxismo, hegemónicos no ambiente intelectual em que se integrou mal chegou à Universidade; em relação à sua matriz católica de origem, a cultura religiosa em que tinha crescido.

É bem visível o conflito interno que, por causa dessa traição, perpassa em muitos dos seus ensaios. Quando, em 1967, publicou Heterodoxia II, sentiu necessidade de questionar a posição heterodoxa e a boa consciência com que a tinha afirmado. O sentido do convite que agora lhe foi feito pode ser formulado com palavras que são ao mesmo tempo de homenagem e de reserva: o Eduardo Lourenço que chega a conselheiro de Estado é uma figura consensual, livre de todo o teor polémico e de conflito. É fácil perceber que o convite lhe foi dirigido por ele encarnar publicamente e por mérito próprio, no espaço cultural português, a última figura do “intelectual universal” e do “pensador” que se dispõe a ser consultado como um oráculo sobre as questões portuguesas (inclusivamente a famigerada “identidade” nacional), assim como sobre uma Europa desencantada – essa Europa que Eduardo Lourenço, seguindo uma grandiosa tradição literária e filosófica, sempre representou como um “continente espiritual”.

É certo que ele, por palavras e actos, contribuiu activamente para essa imagem esotérica, digna de uma análise “mitológica” como a que ele empreendeu para analisar os mitos da cultura nacional. Mas o Eduardo Lourenço verdadeiramente interessante, aquele que importa ser lido, ouvido e discutido, é o que não se deixa fixar nessa imagem do “pensador” para todo o serviço e do homo culturalis por excelência e por unanimidade. No seu percurso mais recente, não é possível omitir a apropriação a que tem sido sujeito. Uma apropriação vinda quer de sectores políticos quer de sectores culturais (não necessariamente coincidentes). Enquanto leitor e admirador de Eduardo Lourenço, apraz-me pensar – e sinto mesmo a necessidade de o fazer - que não o leio da mesma maneira que os seus “próximos”; sinto até um prazer perverso ao perceber que a parte mais importante da sua obra é precisamente aquela que, em última análise, está em franca contradição com os usos, instrumentais ou não, a que é submetida, não através de uma leitura efectiva, mas através da construção de uma imagem pública. A designação de Eduardo Lourenço para Conselheiro de Estado tem um grande significado simbólico,mesmo que em termos efectivos isso não o vincule com maiores consequências do que o modo como tem sido politicamente cooptado por alguns sectores políticos e posto ao serviço de uma cultura acrítica e conservadora (onde o que menos importa é a distinção entre Esquerda e Direita). Quanto mais exaltam a figura do “pensador”, mais esses sectores celebram a ausência de pensamento. Com a sua nomeação para Conselheiro de Estado, Eduardo Lourenço nada tem a ganhar e há alguma coisa que perde. As razões são óbvias: trata-se de um lugar que limita, pelo menos simbolicamente, o uso do instrumento fundamental de que ele não pode prescindir, sob pena de alterar o seu estatuto e a sua função: a palavra. Como é que um homem de palavras aceita colocar, ainda que simbolicamente, a palavra sob condição? Como é que renuncia, ainda que parcialmente, ao seu bem mais precioso?

 

 

 

 

 

 

 

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