O efeito Eco

A figura de homem de saber enciclopédico que Umberto Eco construiu e cultivou tem características singulares e fizeram dele um intelectual entre dois mundos: o mundo dos livros, de feição iluminista, e o mundo contemporâneo, da informação mediática e da desordem.

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A Umberto Eco servem com justeza os epítetos hiperbólicos, independentemente da actual circunstância celebratória. Acrescentemos a uma longa lista que pode ser recenseada mais um epíteto: ele foi um fenómeno intelectual total. A figura que lhe corresponde, única na cultura europeia, fez uma síntese grandiosa e paradoxal de tipos diferentes, que em regra são incompatíveis: a síntese do “intelectual universal”, que dominou quase todo o século XX, pondo a sua razão, a sua autoridade e o seu prestígio ao serviço de causas públicas e valores universais, com o “intelectual específico”, que só intervém no seu campo de saber especializado (mas ele desdenhou sempre do intelectual empenhado: “A única coisa que um intelectual pode fazer se a casa começa a arder é chamar os bombeiros”); do professor que, na  mais velha universidade europeia (a de Bolonha), ocupou o lugar eminente da ciência e do espírito europeus, com o jornalista e cronista em jornais e revistas do seu país, esse posto avançado de uma grotesca mediacracia; um erudito e estudioso, para quem o mundo é uma biblioteca, com o homem moderno, ou mesmo pós-moderno, atento, por uma espécie de hedonismo frívolo e curiosidade intelectual, às manifestações de superfície e da cultura de massas; um filósofo e um semiólogo ocupado com questões esotéricas da Estética medieval ou do conceito de abdução, com o exotérico romancista que, já tardiamente, em 1980, tinha então 48 anos, se aventurou no romance histórico, O Nome da Rosa, que foi o primeiro dos seus “passeios nos bosques narrativos” (para utilizar o título das suas Norton Lectures, em Harvard) e se tornou um dos best sellers mais difundidos e famosos da literatura universal do último meio século; o estudioso das obras da alta cultura, do cânone mais exigente do património literário e filosófico (Dante, Kant, Leopardi, Joyce...), com o desenvolto analisador de banda desenhada e figuras da televisão.

Não se pense que esta síntese grandiosa só lhe trouxe a aclamação e a glória. Uma coisa é a imagem pública e “profana” de Umberto Eco, outra coisa é o juízo dos seus pares. O culto generalizado e o reconhecimento universal que fizeram dele um monumento da cultura e a que ele respondeu com espírito irónico (foi, acima de tudo, um ironista) teve também o outro lado: a crítica e as reservas, vindas de filósofos, ensaístas e escritores, pelo seu eclectismo considerado estéril, pela sua suprema arte da homologação de tudo com tudo que muitos consideraram irresponsável. Homologar, disse um dos seus críticos (o poeta e ensaísta Alfonso Berardinelli), foi a sua paixão.  

A imagem que mais fortemente lhe está associada é a da biblioteca. A sua biblioteca pessoal foi muitas vezes objecto de reportagem. Não apenas pelo seu tamanho, mas porque se tornou uma extensão metonímica do próprio Umberto Eco, enquanto intelectual que não consegue olhar o mundo senão como matéria e metáfora da legibilidade que os livros proporcionam. E enquanto autor-bibliotecário, tinha definido um limite para a capacidade de a memória poder dominar a “navegação” nos livros: 30 mil títulos. Mais do que isso, dizia ele, a biblioteca entrava no reino da perda e do caos e anulava-se na sua finalidade. O seu culto do livro, a sua fé na cultura livresca (recordemos que o herói de O Nome da Rosa é um bibliotecário de um convento medieval, chamado, em chave facilmente decifrável, Jorge de Burgos) e a sua ideia de que o património bibliográfico constituía uma cartografia da história e da cultura universais levaram-no a proferir palavras muito pouco simpáticas para caracterizar as chamadas redes sociais: “Elas dão direito de palavra a legiões de imbecis”. Nunca antes tinha proferido uma frase que lhe valesse, como aconteceu com esta, uma hostilidade tão vasta.

Tão dominante e hiperpresente no espaço público foi a presença de Umberto Eco, que já em 1990 duas estudiosas do fenómeno publicaram um livro que se chamava Effetto Eco. O “efeito Eco” haveria de prolongar-se. Para esse efeito, muito contribuíram as crónicas que publicou durante anos no jornal La Repubblica e na revista semanal Espresso, com o título genérico da coluna que se tornou famosíssimo: La Bustina di Minerva (a coruja de Minerva, como sabemos, é a ave da filosofia, aquela que Hegel dizia que só levantava voo ao crepúsculo). O “efeito Eco” não advinha propriamente da sua obra mais especializada, seja sobre a estética medieval, seja enquanto semiólogo (e devemos pensar o quanto a fortuna da semiótica nos estudos literários, nos anos 60 e 70, deve a Umberto Eco). Esse efeito advinha, em grande parte, de duas categorias que ele criou e definiu e depois se tornaram de uso corrente, num livro de 1964, uma recolha de ensaio sobre a cultura de massas: os apocalípticos e os integrados. Os primeiros têm uma visão elitista da cultura e fazem da recusa e da crítica, até ao flagelo e à exasperação, a atitude que os distingue; os segundos acham que vivemos no melhor dos mundos possíveis e têm uma atitude de adesão em relação à cultura, tal como ela é produzida, abdicando de qualquer gesto intempestivo ou de vontade de transformação.

No ano anterior, em 1963, Umberto Eco tinha integrado o Gruppo ’63 (do qual faziam parte, entre outros, dois importantíssimos escritores da segunda metade do século XX: Edoardo Sanguineti e Giorgio Manganelli), que tinha um programa estético-literário integrável nas neovanguardas dos anos 60. Mas o seu gosto pela observação e análise da cultura de massas (que o levou a escrever sobre futebol, a publicidade, as vedetas, a moda, a banda desenhada, o Kitsch) já tinha ficado patente nos artigos que tinha escrito, entre 1959 e 1961, para a revista literária Il verri, que tinha sido fundada em Milão, em 1956, por Luciano Anceschi. Da recolha dos artigos publicados nessa revista resultou um livro, em 1963, chamado Diario Minimo. Inscreve esse livro na mesma família – em termos metodológicos e quanto à atitude perante o fenómeno da cultura de massas – das Mitologias, que Barthes tinha publicado em França, em 1957.

Em 1962, Eco tinha publicado um dos seus livros de mais longo efeito, Obra Aberta, onde a coexistência de Joyce com a teoria da informação causou algum espanto. Mas o conceito de “obra aberta” é um dos contributos maiores de Eco para a teoria literária, numa altura em que esta vivia numa fase de grande encantamento. Umberto Eco foi precisamente um dos espíritos “encantadores” dessa época, cujo crepúsculo ele também assinalou de maneira enfática, quer no seu discurso teórico, quer na própria atitude do teórico que passa para o romance, ainda que os seus romances sejam uma continuação da teoria por meio da ficção.

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