E se Jesus tivesse nascido mulher?

O mexicano David Toscana regressa ao universo de personagens heróicas e trágicas, mas desta vez na Galileia.

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David Toscana: “A literatura deve falar do fracasso, da dor, da morte, de tudo o que não queremos que esteja presente na nossa vida” pedro cunha

O que mais impressiona no anterior romance do mexicano David Toscana (n. 1961), O Exército Iluminado (Parsifal, 2014), é o delírio quixotesco a que um professor de História e um grupo de cinco crianças com atraso mental se entrega: partem da cidade de Monterrey numa carroça puxada por uma mula para reaverem o território do Texas, perdido para os Estados Unidos da América numa guerra de há mais de um século. Não sendo apenas um modelo, o Dom Quixote de Cervantes é o inspirador dos romances de Toscana. Isso era também já bem visível em O Último Leitor, que trata de um Quixote que lê e que conhece o mundo através dos livros. Mas mais do que as suas figuras quixotescas, o ponto central dos seus livros é, sobretudo, o heroísmo trágico das personagens.

O seu mais recente romance, Evangelha, não foge a este propósito. Nele, Toscana interroga-se: E se o filho primogénito de Deus, contrariando as Escrituras, não tivesse nascido homem mas mulher? A delirante ideia não é original — estou a lembrar-me, por exemplo, do romance do cabo-verdiano Mário Lúcio Sousa, O Novíssimo Testamento (D. Quixote, 2010), em que Jesus, não nascendo mulher, ressuscita como mulher. Mas Toscana trata-a de uma forma bastante irónica, muitas vezes divertida, e sem nunca escapar a essa dimensão trágica das suas personagens que o caracteriza, mesmo quando essas personagens ocupam pouco espaço no romance, como é o caso, neste, dos reis magos, que depois de perdidos tempo de mais no deserto (o que os faz gastar metade do ouro e da mirra que traziam), seguindo uma estrela que parecia não saber o lugar exacto do nascimento, chegam a Belém e se deparam com uma rapariga nasciturna; viraram costas, amaldiçoando o deus dos judeus, e nem as oferendas deixaram.

David Toscana retoma passagens da Bíblia para narrar uma história em que os pais, Maria e José, chamaram Emanuel (que significa ‘Deus connosco’) à sua filha primogénita, e não Jesus, pois não nascera rapaz. (A narração decorre em dois planos, o terreno e o celestial.) A rapariga nasceu por um ‘acaso’, nem o teimoso Jeová compreende nem aceita, facto que o deixa irado, dando de seguida ordens ao arcanjo Gabriel para encontrar depressa outra mulher virgem (ela ter de ser descendente do rei David parecia a parte mais fácil, dada a prolífica descendência deste e dos seus filhos em gerações passadas, entre bastardos e legítimos) para que o espírito de Jesus, o Filho, o que deveria ter nascido e que ainda se encontrava por ali no Céu à direita do Pai, pudesse ser dado à luz na Terra. Entretanto, a Trindade já estava transformada em Tétrade. As aventuras do arcanjo para tentar convencer uma moça virgem a engravidar do Espírito Santo, não são bem sucedidas e Gabriel é vítima de bastantes percalços. “Mas os homens não lhe deram ouvidos. Agarraram em Gabriel e levaram-no para fora. E conheceram-no e abusaram dele toda a noite até ser manhã e deixaram-no quando despontava a aurora. (…) E Deus não o ajudou. Nem sequer o ouviu.” Também para as escolhidas as coisas não foram fáceis: “Shifra sentiu-se tão cheia de graça que comunicou aos seus parentes a notícia da gravidez divina. Naamah, o seu noivo, repudiou-a. Antes de o galo cantar, já os homens da cidade a tinham lapidado.” O arcanjo, cansado e desanimado, acaba por se apresentar diante do seu Senhor e declarar-se incompetente para a função para que fora incumbido. O fracasso e a melancolia são também temas comuns aos anteriores romances de David Toscana, O Último Leitor e Santa Maria do Circo (ambos publicados pela editora Oficina do Livro). Numa entrevista há alguns anos, o escritor mexicano sublinhou isso como matéria necessária para causar conflito na trama: “A literatura deve falar do fracasso, da dor, da morte, de tudo o que não queremos que esteja presente na nossa vida. A literatura precisa de conflito para que no fim haja pelo menos a ambígua possibilidade de uma redenção.”

David Toscana, mais do que tentar reescrever passagens dos Evangelhos e do Antigo Testamento, explora espaços de contradição nos textos bíblicos, espaços que escapam à lógica (que não a teológica), e preenche-os com a sua imaginação, oferecendo-lhes assim uma dimensão crítica.

A linguagem deste romance é límpida, paródica e ao mesmo tempo irónica, cuidada, impondo um ritmo constante à acção, conseguindo alternar os dois planos da acção (celestial e terreno), quase dissimulando os diálogos e as descrições, os pensamentos e as geografias. Ao leitor cabe ir juntando os pontos de vez em quando. Este talentoso domínio da escrita (que neste romance não é tão evidente, embora lá esteja) é uma das virtudes da obra de David Toscana, para quem “a linguagem é a literatura”, como afirmou na já citada entrevista.

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