E deram-lhe uma espingarda

Tenso, claustrofóbico, minimalista, O Muro é capaz de ser o melhor filme americano sobre o Iraque desde Estado de Guerra de Kathryn Bigelow.

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O Muro: um conto moral rodado como uma velha série B de guerra
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Se o cinema americano não se tem coibido de olhar para os conflitos do Iraque e do Afeganistão e para as suas consequências é mais ou menos certo que ainda ninguém o fez melhor do que Kathryn Bigelow em Estado de Guerra (2008). Que O Muro chegue perto já é qualquer coisa, e que o faça com uma economia espartana que parece aprendida junto de gente como Don Siegel é ainda mais de louvar: apenas três actores (um dos quais quase só se ouve) num cenário único, e uma história que se desenrola praticamente em tempo real. Uma patrulha americana algures no Iraque, enviada para responder a um pedido de ajuda, entra num jogo do gato e do rato com um sniper que tem o terreno a seu favor. O “muro” do título é simultaneamente protecção e armadilha para um dos soldados americanos (Aaron Taylor-Johnson, infinitamente melhor aqui no que nos Animais Nocturnos, a transportar o filme aos ombros), com quem o iraquiano entra num diálogo rádio com tanto de sinistro como de desarmante, fazendo passar nas entrelinhas todo o absurdo de uma guerra que, às tantas, já se perpetua a si própria sem razão.

O filme de Doug Liman (que lançou a série Bourne em 2002 com Identidade Desconhecida), contado em três actos secos, claustrofóbicos e tensos, fornece contraste eloquente com o recente Máquina de Guerra de David Michôd (2017); esse filme assume uma dimensão mais escarninha e satírica do que O Muro, mas ambos se atacam à dimensão do erro quase “imperial” do exército americano. Ambos perguntam porquê empenhar e sacrificar vidas humanas numa missão em que ninguém parece acreditar, ambos falam do impacto da guerra nos homens que a travam. Liman, contudo, fá-lo de maneira mais incisiva e directa, e usando com grande inteligência as limitações do argumento para manter o filme no “fio da navalha”, sem que o espectador consiga prever o que se vai seguir. O Muro tem ao mesmo tempo algo de peça teatral (respeitando as unidades aristotélicas de tempo e acção) e de jogo video — e o anterior filme de Liman, No Limite do Amanhã (2014), tinha Tom Cruise condenado a reviver o mesmo dia e a refazer a sua missão precisamente como num jogo video.

Mas, ao evitar fogos de artifício desnecessários, ao resistir à tentação de preencher o vazio, ao filmar tudo com as cores solares e queimadas de um western desértico, Liman joga a contra-corrente do cinema americano contemporâneo e encontra o tom e a forma certa para O Muro: um conto moral em forma de luta de vontades, rodado como uma velha série B de guerra. Sai-se com uma pirueta de uma corda bamba que teria derrotado outros realizadores, e assina de longe o seu melhor filme.

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