E a sá-uuuuu-dádji

1. Aterrei no Galeão às 7h18 da manhã e três horas depois saí do táxi, um recorde pessoal. Ah, que saudades eu tinha de derreter no trânsito, dos ônibus desembestados, do motorista dizendo que lugar de grafiteiro é na cadeia, do patrão de motorista dizendo que o salário mínimo está é alto, e as obras que avançam para a Olimpíada, e as favelas que estão onde estavam, falando sério, deus na terra é nóis e o Rio de Janeiro continua lindo.

2. Do ponto de vista dos cães, nove meses fora, nada. Lá estavam a Preta e a Bela ao cimo do jardim no Cosme Velho, como se nos tivéssemos visto ontem. Nove meses para elas é o dobro do que é para nós, não?, e cada dia fora é tempo que não estivemos juntas. Mas a verdade é que volto em visita como se nove meses fora fossem outra vida, portanto, como se o dia seguinte a 7 de Março fosse 27 de Novembro. Preta e Bela estão certas, não há ex-casas, não há ex-cidades, não há ex-cães, apenas vamos e vimos entre as nossas várias vidas.

3. Não que eu tenha voltado a dormir no jardim do Cosme Velho que será sempre a minha casa-grande no Rio de Janeiro, sem senzala, sem arame farpado, sem câmaras, sem porteiro e vizinha da favela. Lá estavam os garotos da favela em cima das motos, uns os mesmos, outros já outros, um dos novos chamava-se Anderson e foi firme comigo: sim, eu tinha mesmo de pôr o capacete, porque desde que a polícia se instalou na favela aquele carro da polícia não sai daqui. Isto, na esquina onde os mototáxis se juntam para levar as pessoas aos pontos mais íngremes por dois reais e meio. Um café na Zona Sul são quatro reais.

4. No meu ponto mais íngreme há um homem descalço. Não vou contar aqui como e por que nos cruzámos, mas quero dizer que ao contrário de mim ele sobe a ladeira descalço e desce a ladeira descalço. Ele vive descalço no Rio de Janeiro para não ficar diferente de quem vive descalço no Rio de Janeiro.

5. O jovem mototáxi Anderson tinha ficado de subir de novo a esse ponto mais íngreme para me trazer de volta mas não apareceu. Acontece bastante no Rio de Janeiro: uma coisa que se aprende aqui é a não esperar nada, o que, claro, é uma forma de esperar tudo. Desci a pé com as minhas sandálias, e só isso já era um luxo. Passei a curva onde sei que apareciam cadáveres noutro momento da história do Rio. Ultimamente, contam amigos cariocas, a história veio de novo, estupros, assaltos, violência em geral, parece que piorou. A amiga que me acolhe no bairro de Laranjeiras contou-me que um colega de faculdade estava sentado num bar da Lapa quando uma bala perdida entrou na cabeça dele. Acaba de acontecer, histórias de Dezembro em plena inauguração da árvore de Natal da Lagoa, quando em frente aos shoppings aparecem ursos gigantes de peluche, como se estivéssemos na América do Norte.

6. No Rio de Janeiro, calor demais é pé-de-chinelo, fracasso, desleixo. Nos shoppings, nos restaurantes, nos cinemas, estão aqueles tais 17 graus. Ah, que saudades eu tinha de caminhar pelo Verão carioca com um casaco e um lenço do tamanho de um lençol, porque vou entrar num cinema.

7. Fui ver O Vento Lá Fora. A declaração de interesses é que o realizador é meu amigo de casa-e-pucarinho, o Marcio Debellian, presença destas crónicas há anos. Claro que foi por causa disso que fui ver o filme três dias depois de aterrar, mas não é por causa disso que falo dele aqui. O Vento Lá Fora é um filme com Cleonice Berardinelli, Maria Bethânia e Fernando Pessoa, bastaria isso para falar dele aqui. Bastaria Dona Cleo, porque não apenas ela é a mestre dos estudos portugueses no Brasil como aos 98 anos, sempre elegante, está mais travessa do que nunca.

8. A sala estava acima de meio cheia, bem bom para um cinema na Era Download. E, sendo um filme de texto, e sendo o texto uma longa sequência de poemas, a sala interagia: ria, comovia-se, comentava. Já eu, chorava como a mais ridícula das Ofelinhas. Chorava pelo meu amigo, pela reunião daqueles três, por Dona Cleo ter este divertimento aos 98 anos, por a podermos ver assim para sempre, fazendo tropelias com Maria Bethânia, a seu lado, de branco, dando-lhe o palco. É que Maria Bethânia é adorada no Brasil, coisa de devoção, ícone, santa, além de que muitos brasileiros descobriram Fernando Pessoa com ela, ouvindo-a dizer, ouvindo-a cantar. E aqui está ela, repetindo, uma duas, três vezes “E a saudade”, enquanto vemos a cara de Dona Cleo: hummm. Porque a métrica ainda não está bem, o tempo não está bem. Bethânia repete e olha para ver se acertou. Hummm, quase, Dona Cleo exemplifica. Até que Bethânia consegue: “E a sá-uuuuu-dádji.”

9. O texto dito é o centro do filme, mas os bastidores da voz, do engano, da dúvida, também lá estão, e a junção dessas duas coisas parece-me pôr o texto no lugar justo. O texto é o centro mas não há idolatria. Um filme de encontro e atenção.

10. Se simpatia é quase amor, como diz um bloco de Carnaval, certamente atenção é quase amor.

11. Segunda-feira foi o lançamento do DVD na PUC, que é a universidade católica. Centenas e centenas de pessoas, uma fila interminável para autógrafos. Bethânia não se furtou, assinou ao lado de Dona Cleo um bom pedaço. Eu furtei-me, fiquei na varanda a beber um copo de vinho, à espera que a fila se diluísse. Na varanda apareceu um rapaz chamado Yago. O Rio de Janeiro é isto, estamos numa varanda que parece debruçar-se sobre a selva, porque todas as árvores são brutais, Maria Bethânia está ali à frente a assinar os DVD com a cara de um poeta português morto, e um rapaz chamado Yago aparece, trazendo com ele todo o cruzamento possível entre Shakespeare e as favelas que nos rodeiam, porque é um bolseiro da PUC. Yago com ípsilon, porque estamos no Brasil, já viveu em todo o subúrbio imaginável, e descobriu, sim, Fernando Pessoa, com Maria Bethânia. Olhem, assim de repente, acho que é a isto que os diplomatas chamam a ponte entre Portugal e o Brasil. Pois, funciona quando é de verdade.

12. o lançamento, descemos ao Baixo Gávea para beber, comer uma farofa. Fiquei a ouvir histórias da briga que foi a última eleição, e continua, xingamentos, pancadaria, amizades que foram ao ar, no duelo final entre Aécio e Dilma. O Brasil está fracturado, diz-se. Ou seja, fractura exposta, porque a fractura já estava lá. Quando tem algo para rebentar, a todo o momento rebenta, podemos até estar sentados numa esplanada, bebendo caipirinha, comendo farofa. Que saudade, farofa de banana.

Foto
cortesia Marcio Debellian

 

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