Dueto de veludo em piso estilhaçado

A coreografia de Tânia Carvalho, inicialmente cativante, ao repisar os mesmos ingredientes, instala-se numa fatigante planura opressiva.

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Absortos no seu singular dueto, Marta Cerqueira e Luís Guerra são soberbos Rui Palma
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Sóbrias cortinas negras envolvem o espaço cénico e, ao fundo, um longo véu branco cai sobre o piso claro do palco. Em forte contraste figura-fundo o movimento dos corpos esguios de um homem e de uma mulher, cinzelados numa malha preta justa, é quase gráfico. O desenho, percebe-se, esteve na origem desta peça – ou não fosse este um dos métodos de pesquisa a que Tânia Carvalho (Viana do Castelo, 1976) recorre nas suas coreografias.

A leitura abstracta inicial vai sendo pontuada por subtis notas teatrais: manchas escuras nas maçãs do rosto maquilhado de branco conferem aos intérpretes fisionomias de jogral; dançam atraídos para a órbita um do outro sem lograrem contacto físico, como se procurassem uma conexão que não consegue acontecer.

À vez, e entre breves pausas, executam curtas variações sobre frases coregráficas de formais linhas clássicas e vocabulário balético retrabalhado, a lembrar as estratégias combinatórias de Merce Cunningham. Absortos no seu singular dueto, Marta Cerqueira e Luís Guerra são soberbos. Extensões dos membros, piruetas, curiosas versões de pas de bourrée velozes em meia ponta e joelhos flectidos, transitam, num ápice, de um registo mecânico e sincopado, como tocantes e risíveis marionetas humanas, para a fluidez macia de gestos deslizantes e aveludados, a doçura de braços em ondulações de cisne.

Logo de início, porém, Carvalho mergulha esta encantatória litania numa agonia violenta: a trama relacional do par é continuamente avassalada pelo volume estridente da banda sonora - estampidos metálicos, vendavais agrestes, roufenhos maquinismos enferrujados, o ranger de objectos arrastados ou de vidro estilhaçado - com a qual os bailarinos criam engenhosíssimas interacções coreográficas. Irrupções de luz branca ofuscante, que decrescem subitamente até à penumbra e mostram os intérpretes num apaziguante contraluz cálido e rosado, depressa dão lugar a ácidas tonalidades esverdeadas, quase espectrais.

Há, ainda, uma terceira personagem misteriosa: perfilado a um canto, o vulto de uma figura totémica (interpretado pela coreógrafa) de insólito traje vermelho franjado, parece vigiar de longe toda a trama. Perto do desfecho ronda em passada cambaleante o casal, por fim unido num fugaz enlace, numa materialização (quiçá redundante) dos fantasmas que o assolam.

A tensão entre atmosfera ríspida e personagens vulneráveis, inicialmente cativante, ao repisar os mesmos ingredientes, instala-se numa fatigante planura opressiva. Com o ímpeto agreste de som e luz a disputar a nossa disponibilidade perceptiva para o detalhe, outros nexos ou matizes emocionais tendem a soçobrar.

Com five room puzzle – clássico problema matemático, insolúvel - e um soneto de Fernando Pessoa sobre a inacessibilidade da nossa alma como epígrafe, este híbrido entre o desenho e a dança, quer falar-nos da incomunicabilidade amorosa, da incompletude e transitoriedade nas relações humanas. Na sua aspereza excessiva, a peça contém uma marca autoral enigmática e perturbante. Dispondo-se a suscitar a adesão ou o repúdio, arrojo e qualidades não chegarão, porventura, a amenizar os riscos inerentes à manipulação da fórmula química da sua própria implosão.

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