Do “caixote do lixo” para os livros: as histórias de um advogado garimpeiro

Vasculha jornais, arquivos, bibliotecas. Ouve relatos em bancos de jardins. Aos 37 anos, Marco Pereira tem sete livros publicados. Todos sobre Estarreja e Murtosa. Uma busca pela sua identidade

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Adriano Miranda
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Quem passava no centro da vila encontrava-o muitas vezes por lá. Tardes inteiras sentado num banquinho de jardim a conversar com um amigo com idade para ser seu avô. Ou bisavô. Alguns olhavam de lado, a estranhar aquela excentricidade. Mas Marco Pereira não se ralava. Sempre que andava a vasculhar um tema, voltava ao seu método. Perguntava em Pardilhó, freguesia de Estarreja onde nasceu e ainda vive, quem saberia dizer-lhe mais coisas sobre este ou aquele assunto. E depois ia bater às portas. Perdia horas a ouvir histórias.

Entre os seus papéis, metodicamente guardados, ainda conserva correspondência trocada com um desses eruditos habitantes, Jaime Vilar, homem da cultura e literatura locais. Um dia, o professor enviou-lhe um texto sobre moliceiros que ia remeter para um jornal regional. Pediu-lhe que o lesse antes da publicação com a seguinte recomendação: "Marco, emenda, corta, acrescenta o que entenderes por melhor. É a escrever que se aprende a ser escritor e tu pareces ir pelo bom caminho."

Então, Marco Pereira era um “rapazote de 18 anos”, Vilar “um mestre do português”. E o jovem, convencido do exagero das suas palavras, encarou-as como uma “responsabilidade” acrescida. E um conselho feito modo de estar.

Não se tornou escritor mas, por essa altura, as letras já eram parte importante da sua vida. Um par de anos antes tinha transformado o seu “bairrismo” em vontade de conhecer a sua cidade. “A minha terra pode não ser a melhor do mundo. Mas para mim é a melhor do mundo”, diz em jeito de declaração o advogado de 37 anos. Por causa dessa afeição foi um dia bater à porta da imprensa local, oferecer-se para ser jornalista. Ia a eventos políticos ou culturais, inaugurações, conferências. Aumentava o seu “conhecimento informal” de Estarreja e do concelho vizinho, Murtosa. Aos poucos, enredou-se na História e não mais a quis abandonar.

Não foi por influências familiares que isso aconteceu. O pai era operário na indústria química, a mãe trabalhadora doméstica. Para o bem ou para o mal, nunca se meteram naquela ideia do filho. “Sabiam que esta era a minha mania e respeitavam-na”, conta sorridente. “Há quem saiba equipas de futebol de trás para a frente, eu ocupei essa energia com a história local”. Já antes, na escola básica, se um professor faltava era na biblioteca da escola que ia passar o tempo, quase sempre a ler banda desenhada. Em casa, tinha histórias aos quadradinhos antigas e também a colecção Falcão, onde já encontrava conteúdo de “contexto histórico”.

“O local é a nossa identidade”

Nos livros escolares, habitados com as narrativas nacionais e internacionais, não encontrava relatos sobre as suas origens. E Marco precisava delas para se conhecer: “O local é a nossa identidade”, acredita, e descobrir “os porquês para lá da superfície visível” um enorme desafio. Foi assim que mergulhou até à exaustão nos arquivos das publicações centenárias O Jornal de Estarreja e O Concelho de Estarreja. Pedia pilhas de jornais e, de caderno e caneta ao lado, copiava tudo o que lhe interessava. “Escrevia a data e logo a seguir um resumo da notícia”, recorda. Pouco a pouco, foi transferindo esses arquivos para um meio digital. Tem-nos todos organizados por temas.

Não seria de estranhar se, na altura de eleger o curso para seguir no ensino superior, escolhesse História. Mas, a pensar num “melhor futuro financeiro”, Marco fez a curva para o Direito. “Ir para História significava ser professor. E toda a gente dizia, a começar pelos nossos professores, para não fazermos isso porque não havia emprego no ensino.” Ele interiorizou essa “pressão informal”. Mas nunca aceitou desistir da História.

A viver na cidade dos estudantes, apaixonou-se pela Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, a segunda maior do país, conheceu as entranhas ao arquivo universitário, visitou outras bibliotecas temáticas mais pequenas. Era um admirável mundo novo a abrir-se à sua frente. Entre as estantes da enorme biblioteca, tornou-se conhecido dos funcionários pelas horas que ali passava. As portas fechavam, na altura, às 22h45. E Marco era o estudante dos serões. “Era muitas vezes o único a essas horas, quase sempre o último a sair.”

Tinha 21 anos quando publicou o seu primeiro livro, uma recolha fotográfica de Pardilhó. Depois desse, mais seis já se revelaram, o último deles — sobre o património das freguesias de Beduído e Veiros — há poucas semanas. Nas gavetas, tem muitos mais.

Marco Pereira, 37 anos, é “um generalista”. Particularmente atraído pela Idade Média, o que de vez em quando o faz viajar até à Torre do Tombo, em Lisboa. Fascina-o o nevoeiro ainda existente sobre aquela época: “Sobre a História Contemporânea todos sabemos alguma coisa, ou achamos que sabemos, todos temos opiniões. Sobre a Idade Média não. Mas entre as suas pesquisas — que faz quase diariamente —, há matérias tão diversas como a economia, a saúde, a educação, a administração política e judicial, a história eclesiástica, a toponímia. Sempre com um colete de forças geográfico confinado a Estarreja e Murtosa. “Achei que na história local podia fazer a diferença, podia descobrir coisas novas.”

Apesar da ausência de castelos e monumentos e da escassez de momentos de grande relevo histórico naqueles concelhos, Marco foi escavando novos contos em jornais, arquivos e bibliotecas. E também em conversas “mutuamente lucrativas” com “velhinhos” dos seus concelhos, muitas vezes em bancos de jardim. Enquanto ele descobria novidades para os seus estudos, eles quebravam a solidão, regressavam aos seus tempos de meninice num mundo quase todo extinto, bem diferente do “homogéneo em que vivemos hoje”. Perguntava-lhes — ainda pergunta — sobre as escolas primárias desses tempos, os professores, as canções trauteadas pelas senhoras que aclaravam a roupa na lavoura, as melodias ouvidas nas desfolhadas ou no dia de Reis. Queria saber tudo sobre as histórias de bruxas e lobisomens contadas às crianças, os brinquedos que usavam, o desenho urbanístico das cidades, os barcos moliceiros e as técnicas de pesca, os carpinteiros navais, os provérbios castiços, os remédios tradicionais para as maleitas mais comuns.

Inspiração nos rodapés

A improvisar uma metodologia, aproveitava a frequência do meio académico para consultar dezenas de teses de mestrado e doutoramento, fazia leituras enviesadas dos livros. “Quando pegava num livro a minha atenção desviava-se logo para os rodapés. Via como é que os outros faziam. Procurava paralelo em fontes locais.”

Estarreja passou por dois episódios militares importantes: a Segunda Invasão Francesa de 1809, com dezenas de mortos, e a Monarquia do Norte (ou Traulitânia) em 1919. Mas foi a chegada do caminho-de-ferro à cidade, em 1862, e depois a instalação da indústria química, em 1940, que definiram a cidade como ela é hoje. Na Murtosa esse papel coube sobretudo à emigração, para o Brasil primeiro e para os EUA depois. Em Pardilhó, a construção naval, agora praticamente extinta, foi de grande importância noutros tempos.

Marco Pereira tem datas, nomes e acontecimentos na memória. Enquanto conduz pelas cidades geminadas, vai fazendo breves relatos. Explica porque tem uma determinada rua aquele nome, que figura homenageia. Aponta para moradias de estilo Arte Nova enquanto vai contando que aquelas casas dos brasileiros se tornaram comuns em Murtosa depois de os emigrantes regressarem à sua terra. Recorda a importância da indústria de lacticínios em Estarreja, que agora conserva apenas a fábrica da Nestlé em Avanca, inaugurada em 1923 por Egas Moniz. Conta a curiosa história da Pensal, a famosa cevada que foi baptizada com o nome de um pequeno lugar da vila.

A sua ainda “modesta” biblioteca pessoal está concentrada num compartimento da casa — mas Marco sonha com uma habitação de corredores compridos e largos que possa encher de estantes e preencher com livros e documentos. Os mais antigos que tem na sua posse são um formulário português editado em 1621 e um compêndio de Direito Canónico em latim que acredita ser do século XVI. Mas na sua colecção há também cartografia, com relíquias como a folha da região de Aveiro da Carta Corográfica de Portugal, de 1870, fotografias antigas e algumas recentes tiradas por ele, postais empoeirados ou não, gravuras, como as de trajes locais de meados do século XIX.

Na redacção do Jornal de Estarreja, no mesmo edifício do seu escritório de advocacia, no centro da cidade, criou-se há algum tempo um “caixote do lixo do Marco”. Lá depositam folhetos, brochuras, cartazes e vários tipos de papéis que teriam como destino o esquecimento se não fossem resgatados pelo advogado garimpeiro. Por estes dias, em vésperas de eleições autárquicas, guarda todos os folhetos e demais propaganda de todos os partidos políticos dos dois concelhos — e essa colecção já a começou nos anos 1990. “Historicamente foi ontem, mas há que começar por algum lado”, graceja.

Na sua vida, a advocacia e a História não são compartimentos estanques. Há coisa de dois anos, a freguesia de Salreu contratou-o para os defender numa disputa de território com a freguesia vizinha de Canelas. “Era preciso deslindar qual é o limite judicial entre elas”, explica. Esse processo de direito administrativo, percebeu, era também uma “investigação histórica”. E foi graças aos seus conhecimentos nessa área que conseguiu desatar alguns nós. Depois de muitas horas imerso em papelada na Biblioteca da Universidade de Coimbra, descobriu um “documento mágico” de 1741 que pode ser a chave para o caso. “Sabia que em algum momento alguém teria de ter definido essa fronteira. O difícil era encontrar a prova”, conta. O processo ainda não está fechado, mas se o documento for tido em conta, não só Marco terá razão como a extensão do território reclamado será, afinal, bem maior do que se pensava inicialmente. “É um processo judicial singular no panorama português”, diz o estarrejense, sublinhando que sem a História isso não seria possível. E o contrário também é verdade: “Uma coisa que aprendi com a advocacia foi que o que sei tenho de provar. Levei essa máxima para a História. Não sei se teria o mesmo método de trabalho se não fosse advogado.”

Marco Pereira cansou-se de um burburinho de “críticas injustas” que volta e meia lhe caiam em cima. Por não ter o curso de História, algumas pessoas diziam-lhe que o que fazia não tinha valor. “Não dava especial importância, mas era desagradável”, admite. Foi por isso que em 2011, sem contar a ninguém, se inscreveu num curso superior, novamente em Coimbra. Se corresse mal, podia sempre desistir ao fim de um semestre. Mas não correu. “Fui tirando boas notas, fui ficando...” Não foi uma aprendizagem profunda a que fez pelas salas de aula coimbrenses: “Já fazia História antes, não houve grande novidade.” O canudo está guardado na gaveta. É apenas prova de uma “teimosia” sua — ainda que tê-lo como testemunho do seu valor o tranquilize. Historiador continua a ser cargo que não reclama. “Não faço disto profissão — nem quero.” Mas, com o cognome amador, irá continuar a respigar a história das suas vilas, que é, na verdade, a sua. 

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