Divertido e desbragado

Do autor de Pornopopeia publica-se agora uma colectânea de contos com a mesma verve libertina e inspirada.

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Humidade: histórias libertinas e sem tabus

Quando Pornopopeia (Quetzal, 2011) foi por cá publicado, percebeu-se que o sexo desbragado, inventivo, divertido, obsceno, exagerado, também tinha um lugar cimeiro na literatura em língua portuguesa. (É, sem dúvida, uma obra-prima da literatura erótica em português.) Chegava do outro lado do Atlântico uma obra cujo título não poderia ser outro que não aquele, pois de uma verdadeira epopeia se tratava: São Paulo era uma Guerra de Tróia, e as surubas (orgias) verdadeiros combates da Ilíada, espadas que entram repetidamente em corpos a todo o momento. Numa brilhante entrevista de Alexandra Lucas Coelho (publicada neste jornal) ao autor, Reinaldo Moraes (n. 1950), este confessa a inspiração homérica e conta que o livro (mais de 600 páginas) começou por ser um pequeno conto a incluir na colectânea Humidade (justamente este agora publicado e cuja edição original brasileira data de 2004), mas que na época o editor não lhe achou graça por não ter “nem princípio nem fim”. O que mais impressiona na escrita de Reinaldo Moraes não é a imaginação das situações, ou o quase priapismo de Zeca (a personagem paulistana), mas a verve, a sua riqueza lexical, incontinente, o ritmo do débito de significados para o mesmo significante, as brincadeiras com a língua.

Ora em Humidade (que reúne dez contos) essa verve desbragada e muito divertida está lá, mas de maneira menos inspirada, no entanto bastante talentosa (apesar de muito do que está escrito ser comum jargão brasileiro). As histórias contadas são libertinas e sem tabus, as personagens hedonistas (algumas mais mentais do que práticas) cumprem a esperada função mesmo quando se debatem nos seus infernozinhos domésticos de frustradas intimidades. Logo a abrir o primeiro conto, Moraes parece querer dar o mote para o que se segue: “A intimidade é uma merda, disse alguém. Talvez quisesse dizer que o casamento é que é uma merda, ela achava. Mas e o amor? Não se pode viver sem amor, o que, em si, já é uma merda. Isso ela sabia. A ponto de dizer do amor: grande merda. Não que o diga sempre. É mais quando acorda sem vontade de enfrentar a gravidade. A gravidade, até mais do que a intimidade e o amor, é que é uma merda. Sob gravidade zero, a merda flutua.”

Enquanto em Pornopopeia Moraes queria contar histórias, dar-lhes acção, fazer “a coisa rolar”, como se de um combate contínuo e necessário contra tabus se tratasse, em Humidade algumas dessas histórias perdem por vezes a vontade, ficam-se pelo quarto, em desabafos, em preliminares sem tesão (para usar a palavra brasileira), em conversas de enrolar que apenas querem mostrar obsessões, situações mais ou menos hipotéticas. O que parece interessar mais a Moraes é o trabalho inventivo com a linguagem (e nisso ele é brilhante), a descrição quase poética de ambientes, e sobretudo os deliciosos diálogos, onde de facto o autor investe muito do seu talento.

Os contos percorrem universos de desejo e frustração, desde o divertido conto Love is…, sobre as aventuras frustradas de uma mulher divorciada, com um filho que lhe boicota um fim de semana com o novo namorado, até um longo delírio apocalíptico algures numa caverna na América. De entre todas as histórias, há pelo menos duas que deixam o leitor agarrado ao livro para as lerem até ao fim: uma delas, bastante original na forma escolhida para a narrativa, Sildenafil (que é a substância activa do Viagra), conta-nos as aventuras de uma “trepadinha farmacêutica”, em que um homem de meia-idade que não cumpre os mínimos conjugais é obrigado pela mulher a engolir o comprimido; o divertido conto é em jeito de bula farmacêutica: “(…) aumenta o efeito relaxante do óxido nítrico através da inibição da fosfodiesterase-5, a qual’ — veja bem, Maria Helena, veja bem — ‘a qual é a responsável pela degradação do monofosfato de guanosina cíclico no corpo cavernoso’. Ouviu isso? Degradação, Maria Helena. Dentro dos meus próprios corpos cavernosos. Degradante. — Degradante é pau mole. — Olha o nível, Maria Helena, olha o nível.”

O outro conto é o que titula o livro, Humidade. Nele se contam as aventuras de Liminha, que casou com Mariana para ter sexo, pois esta dizia que sexo só depois do casamento. Liminha passa parágrafos inteiros com elogios à beleza da namorada (com quem irá casar), “essa apoteose” de mulher, e linda como ela é, diz Liminha, “Mariana nem precisa de buceta”. O seu idealismo de beleza acabará por castigar Liminha após o casamento.

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