Desequilibrados equilíbrios

A Orquestra Sinfónica Portuguesa foi capaz dar vida à música de Adams e de Mahler. Mas perante duas obras que enfrentam a morte, era preciso um pouco mais de coragem.

Foto
Christopher Maltman fez uma interpretação muito clara, mas que poderia ter arriscado mais DR

Num poema de Walt Whitman, The Wound-Dresser, um enfermeiro cuida dos feridos depois da batalha. O poema tem gangrena pútrida, ombros perfurados, mãos amputadas, pescoços trespassados pelas balas, corpos ensanguentados. Mas o compositor John Adams pega nele por outro lado, e faz deste enfermeiro apenas alguém que “viaja no silêncio da projecção dos sonhos”. E assim os moribundos tornam-se irreais fantasmas pairando.

A Orquestra Sinfónica Portuguesa, dirigida pelo jovem maestro venezuelano Diego Matheuz, fez uma interpretação equilibrada da obra de Adams para orquestra de câmara e barítono (pela primeira vez tocada em Portugal). Infelizmente, houve alguns desfasamentos rítmicos que prejudicaram o timbre de certas harmonias em que os ataques precisos são decisivos na linguagem modernista de Adams. Na verdade, trata-se de uma espécie de modernismo conservador, o que não é uma contradição. Neste caso, o compositor adopta um tom “respeitoso”, procurando salvaguardar a integridade do poema através de uma escrita vocal linear que privilegia a clareza da voz de barítono e o cumprimento rigoroso das acentuações do texto.

Às vezes, contudo, o respeito em excesso faz ir por água abaixo aquilo que era irreverente, provocante e tocante no poema original. Não se trata apenas da entrada excessivamente explícita dos corpos ensanguentados na poesia de Whitman (de quem conheceu bem os hospitais em tempos de guerra civil), mas de uma compaixão impotente perante corpos de jovens à beira da morte. O poema desesperado, de ritmo inquieto, fica amolecido pela música de Adams, apesar de nas construções harmónicas da orquestra de câmara pairar ainda alguma da força das imagens reveladas no poema (“quantos beijos de soldados repousam nestes lábios...”).

O barítono Christopher Maltman fez uma interpretação muito clara, mas também podia ter saído um pouco mais da casca. Sem assumir nenhum risco (nem por parte do compositor, nem por parte dos intérpretes), a música desenhou assim imagens dolorosas sublimadas e não teve a coragem de transportar consigo as cicatrizes, as dores e as (com)paixões daquele poema violentamente ensanguentado pelos horrores da guerra.

Na segunda parte veio a Sinfonia n.º 1 de Mahler, a Titã, para a qual não bastaram uma direcção “correcta” nem algumas muito boas intervenções dos músicos da Sinfónica Portuguesa. Com Mahler não se pode refrear as dinâmicas e ser ao mesmo tempo capaz de dar conta dos excessos sinfónicos do compositor, sobretudo nesta obra em que coexistem o terror e a ironia, pequenas alegrias e dúvidas metafísicas, por vezes até nos mesmos compassos, à beira da incongruência. Aqui não basta ser “nem tanto ao mar nem tanto à terra” – não chega equilíbrio orquestral para compreender os desequilíbrios de Mahler. Os paradoxos da vida e da morte, as lutas entre terra e céu, são o terreno deste compositor, logo desde esta sua desafiante primeira sinfonia. De qualquer forma, no primeiro e nos dois últimos andamentos a orquestra foi capaz de fazer viver a Titã e Diego Matheuz conseguiu dominar a respiração musical (às vezes perdida no segundo andamento) e trazer ao auditório do Centro Cultural de Belém aquilo que na música de Mahler, mesmo quando repescado no banal, se rebela contra todo o convencionalismo.

Sugerir correcção
Comentar