Depois da orgia

Numa entrevista publicada na última edição da revista Ler, Clara Ferreira Alves recorda com nostalgia a “época de ouro” da Revista do Expresso, nos anos 80 e princípio dos anos 90, e do espírito rebelde que por lá reinava. Tendo ingressado nessa “escola” quando ela já era um sólido estabelecimento – era eu então um jovem recentemente saído da Universidade cuja última coisa a que aspirava era escrever uma notícia -, tenho muitas reservas em relação a esta narrativa apologética que, do meu ponto de vista, foi alimentada nalguns meios jornalísticos e culturais como uma grande mitologia. As representações do passado são construções da memória, formas afectivas de apropriação. Não tenho por isso a pretensão de estar menos contaminado pela pulsão que me impele a rasurar o meu passado – não apenas este - na esperança de recomeçar algo de novo, do que todos aqueles que, por razões inversas, o engrandecem e o ficcionam. Há pouco tempo, por razões que não são para aqui chamadas, mergulhei nos arquivos da Revista do Expresso desses anos dourados. Foi uma descida aos infernos da minha subjectividade, a consciência aguda de que jamais irei pronunciar uma palavra que corrobore essa conjunção épica assumida pela Clara e muitos outros, certamente com toda a legitimidade e toda a verdade – que não é a minha - de que são portadores. A relação do público com os media é caracterizada originalmente por uma profunda desconfiança. Só começamos a ter alguma confiança nos media quando eles confirmam a nossa suspeita e se apresentam a si mesmos sob um olhar auto-crítico. A auto-crítica não se manifesta em editoriais a dizer “errámos e vamos fazer as coisas de outra maneira”. Não. Pode ser, simplesmente, deixar de confundir a actualidade jornalística com a pretensão histórica: uma arrogância e uma pretensão de autoridade que saltam hoje aos olhos de quem lê a Revista do Expresso dos seu “anos dourados”. Tudo aquilo tresandava à convicção de que o jornalismo cultural (e a crítica como uma das suas facetas) totalizava a “cultura” da época e era o seu símbolo por excelência. É o triunfo da boa consciência, do qual é herdeira a mitologia dos “anos dourados” que tem origem num lugar-comum da visão histórica: o modelo da ascensão, apogeu e queda. Nos ditos tempos de ouro, a Revista do Expresso tinha um sonho cor-de-rosa, muito kitsch: fazer grandes sínteses, sob a forma de uma adição total. O jornal – nós, que o fazíamos – ou porque não tinha grande capacidade de penetração intelectual ou porque aderia euforicamente à superfície do tempo, parece que estava sempre a pôr tudo em ordem. Era uma espécie de moral do jornalismo cultural, que hoje surge como ridículo. Pôr tudo em ordem, fazer as sínteses totais (e os balanços, que não desapareceram, mas tornaram-se um ritual das estações, como os rituais pagãos), presumir que a Cultura grande e a cultura pequena eram produzidas para resultar na Revista dos sábados, implicava um estilo – o estilo aditivo, o “e” que justapõe e aproxima tudo. Tudo era igual, tudo se equivalia. Pergunta obrigatória: e hoje, não se passa a mesma coisa, a cadeia linear do “e” não continua a imperar nas muito mais reduzidas páginas de cultura dos jornais? Pois continua, mas já não há a pretensão de sínteses totais e todas as vontades são hoje muito mais modestas. O problema hoje é outro. Termino com uma fábula para meio entendedor. Naqueles anos dourados, Baudrillard contou  a história de um homem que, em plena orgia, murmura aos ouvidos de uma mulher: “What are you doing after the orgy?

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