Deixem Samuel Úria crescer

Há em Carga de Ombro invenção em dose mais do que suficiente para que este homem deixasse de ser “aperaltado alternativo” e conhecesse uma outra glória.

Foto
Samuel Úria, mestre da recontextualização MIGUEL MADEIRA

No futebol, carga de ombro é fronteira traçada entre o contacto entre dois jogadores dentro das regras do jogo. Mais do que esse embate físico de corpo contra corpo, de combate justo, sem empurrões, cotoveladas, rasteiras ou outros expedientes matreiros promotores de desigualdade, e é caso de apito. Na Carga de Ombro que é canção (e que dá nome ao sétimo álbum) de Samuel Úria, esse encosto permitido transforma-se noutra coisa, numa aproximação redimida, numa abnegada relação com passado para permitir a existência de um futuro. Ou seja, é como um pedido de desculpas, como uma assunção de culpa, uma interrupção momentânea no orgulho por saber que há nisso mais ganhos do que perdas, há nisso mais dignidade e humanidade do que insistir numa verdade que pode estar inteiramente certa mas tem o tamanho de uma ervilha.

Carga de Ombro é também um exemplo acabado de Samuel Úria enquanto mestre da recontextualização. Mas o exemplo perfeito desse ofício em que palavras e expressões se transformam noutra coisa inesperada, aqui mesmo neste Carga de Ombro, o álbum, encontra-se numa das suas canções mais agigantadas: Repressão. Amparado por uma toada filha dos Clã, neta dos Kinks, num rock com pé a marcar o ritmo e a anca agitada pelo suingue, Úria canta-nos pérolas a poucos (demasiado poucos) como: “Retirar prazer / De uma maldição: / Fé no bumerangue, / Karma pra canhão. / Afirmar sem crer / Autos em canção / Já nem distinguir / Entre circo e pão.”

Nesta canção de um Úria que se apresenta ao terceiro verso deste disco como “aperaltado alternativo a aspirar o pop”, pega nas palavras, nas expressões idiomáticas ou em máximas históricas e torce-lhes o sentido, da mesma forma que o faz com a música. Nessa boniteza de composição pop-Gulliver de um Úria que não pára de crescer, É Preciso que Eu Diminua, percebemos a que pode soar um Elliott Smith beirão, resolvido, sem resultar caricatural ou artificial. Úria consegue atar essas pontas, com um nó Windsor (como o canta em “Dou-me Corda”), com a naturalidade de quem acumula mundos e os vai misturando sem manipular a sua natureza nem plano-mestre.

Elliott Smith volta a ser sombra em Graça Comum; os Clã estão por todo o lado em Tapete (a produção do álbum, é bom clarificar, pertence a Miguel Ferreira, teclista dos Clã); Aeromoço denuncia um salutar fascínio pelos Beatles de Abbey Road (as guitarras eléctricas a sujarem na medida justa, as canções mais rijas mas nem por isso menos rendidas à melodia); Cabo do Medo traz aquele Brasil a sonhar com Nova Iorque que encontramos em cada esquina de Rodrigo Amarante; Vem por Mim é uma canção delicada com direito a um coro fantasmático, como se Danny Elfman tivesse continuado por aqui a sua banda sonora de Eduardo Mãos-de-Tesoura.

O bonito nisto tudo é que, por mais gente que trague para a sua música, Samuel Úria parece seguir à risca quem lhe roga que nunca deixe de ser quem é. Ele é um com muitos dentro, com Portugal e América do Norte em abraço apertado, num disco que arranca com ferro a ser malhado numa ligação a O Caminho Ferroviário Estreito, em tom de blues-gospel. É também nesse universo que atraca Ei-lo, belíssima canção que parece já não ter por onde subir, mas logo fura o tecto quando entra em cena a soberba entrega de Selma Uamusse.

“Eu já não sei inventar-me / é só mais do mesmo fermento em massa de autismo”, canta Úria em É Preciso que me Diminua. Claro que é mentira. Há por aqui invenção em dose mais do que suficiente para que este homem deixasse de ser “aperaltado alternativo” e conhecesse uma outra glória. Termina pouco depois despedindo-se do tema com um Mas eu sei crescer. É isso que tem feito desde o início, sem passos em falso. E é desse espaço que precisa. Como se diria em conferência de imprensa dos futebóis: deixem o Samuel Úria crescer.

Sugerir correcção
Comentar