Deixar como está para ver como fica

No Brasil, um e um não são dois, é muita coisa. Em Salvador, primeira capital, lugar primeiro da aventura de construção de um país-nação, é olhar para as ruas e perceber que não há postal que a consiga retratar. Terra feita de anacronismos e encontros, terra feita de gente que se debate e quer saber porquê. E que vive na esperança de que o futuro não seja para depois

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Na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, o pároco quer saber quem ali está pela primeira vez. Há braços que se levantam. “São muitos, sejam bem-vindos a vossa casa”, diz ao microfone. E depois pergunta: “De onde vêm? Façam-se ouvir.” E dos vários cantos da igreja, por cima das mãos levantadas ao alto e da alegria contagiante, começa a percorrer-se um mapa-mundo que cabe todo dentro das paredes azuis da igreja. A cada lugar uma salva de palmas como se acolhessem “todos os que chegam por bem”, diz o pároco. Austrália, Nova Iorque, Moscovo, Goa, Alemanha, Paris, Santiago, Japão, Lisboa, todas as cidades e todos os países confundidos num mesmo destino que se achava exótico e se descobre, afinal, feito de um humanismo e de uma relação de proximidade que só pede o abandono dos preconceitos. O pároco pede que todos se abracem num “único abraço negro, forte e apertado, para que sintamos o nosso outro irmão”. E todos se abraçam.

Não é tanto a religião mas mais a crença em algo que se apresenta de diferentes formas, seja a fé no catolicismo ou no candomblé, que faz desaguar uma igreja cheia no Pelourinho, em pleno centro histórico de Salvador, património mundial da humanidade, onde Michael Jackson gravou They don’t care about us e Jorge Amado, cuja casa olha sombreira para a ladeira, terminou Dona Flor e Seus Dois Maridos. É atrás de um “sentimento de pertença, de estar aqui, neste sítio”, como diz Phyllida, britânica de cabelos brancos segurados por fitas do Senhor do Bonfim, que se chega a uma missa católica que integra a história do diálogo entre as diferentes crenças. É, como explica Michel, 36 anos, vindo de Toulouse, em França, a tentativa de saber mais: “O Brasil é um mistério. É uma potência mundial mas ninguém sabe explicá-lo. Viemos à procura mas não acho que o vamos perceber.” São figuras como esta, de iPhone erguido, a tentar captar os detalhes da missa, que são atropeladas pela Oração a Santo António de Categeró, o santo negro, a pedir que os passos sejam iluminados “e guiado pela Vossa luz [nos] desvie de todas as armadilhas preparadas pelos meus adversários”. 

Francis veio de Oklahoma, nos Estados Unidos, com o namorado, Matthew. É a sua primeira viagem ao Brasil e tudo lhe parece irreal. “É tudo tão puro”, diz a rapariga empoleirada em cima das mochilas para poder ver o momento em que o padre pede que se cantem os Parabéns a um dos fiéis, que nessa terça-feira completa 91 anos. Depois é ver todos e cada um, turistas e crentes, locais e visitantes a serem abençoados numa imensa festa onde o pão é distribuído “para que se multiplique em quem tem fome”.

“Entre a alegria e a miséria, que Brasil é este? Andamos há dias em Salvador e é como se nada lhes importasse mais do que a alegria”, diz-nos, parecendo estupefacto, Joseph, australiano que parece saído das ondas directas da Orla Atlântica. “É o novo mundo”, acrescenta a rir, ele que também vem de um país-continente que fez parte dessa descoberta. 

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A 3.a edição da Bienal da Bahia reuniu para cima de uma centena de artistas em mais de 50 exposições Cortesia Bienal da Bahia/ Rafael Martins

Marcelo Rezende, 46 anos, que fez a direcção curatorial da 3.ª Bienal da Bahia, que decorreu entre 31 de Maio e 7 Setembro, olha para o Brasil, e para o modo como ele está a ser entendido pelos brasileiros, como um tempo de mudança. A Bienal era disso exemplo: reuniu para cima de uma centena de artistas em mais de 50 exposições espalhadas pelo estado da Bahia, sendo 30 na cidade de Salvador e perguntando como é que se respondia hoje aos desafios colocados a uma arte que é, ao mesmo tempo, nacional mas convive num contexto internacional. Mas a mudança de que fala o director opera a níveis que são mais invisíveis que o mediatismo que os acontecimentos dos últimos tempos, e aqueles que se vão seguir, podem fazer passar. Nas ruas podemos ainda encontrar as bandeirolas da Copa do Mundo. Mas essas são as mesmas ruas escuras e esconsas que não vêm nos mapas nem nos guias. E a falta de luz em algumas delas é mais do que a metáfora para o obscurecimento no qual ainda se vive, apesar da euforia que se sente. “O Brasil passa por um momento em que começa a desconfiar da imagem que lhe é atribuída”, comenta Rezende. Segundo o comissário, uma das consequências dessa desconfiança “obrigou a sociedade a ter de lidar com a sua própria imagem. Ficou em evidência que a imagem de país pacífico, mestiço e feito de uma cultura sem traumas não correspondia totalmente à realidade”. E à medida que a visibilidade internacional se vai aprofundando, vai-se instalando um paradoxo na sociedade brasileira: como criar uma identidade interna num contexto internacional? “O Brasil começou a discutir a sua filiação ocidental através de um processo de desconstrução que lhe é imposto pelo mundo estrangeiro que o obriga a ver-se de maneira muito menos encantadora do que aquela com que nos víamos.”

Salvador, lembra Marcelo Rezende não é um lugar qualquer. “É o espaço do nascimento do Brasil e dessa identidade construída feita pela imagem de um Brasil mestiço, da natureza exuberante, e de misticismo.” Talvez não seja visível no imediato nas ruas de uma cidade como Salvador, que “é mais do que um centro histórico”. A cidade chamada “primeira capital do Brasil” é “o início da história do país” e a Bahia “a região de onde surgem as imagens mais fortes para o compreender”. “Há um pouco de Nordeste em todo o Brasil”, acredita Rezende.

A realização da 3.ª Bienal de Bahia é o “fechar da sessão” daquilo a que Marcelo Rezende chama “trauma”. A última edição foi em 1968, encerrada três dias após a sua abertura, com obras que foram interditadas ou desapareceram por acção da censura ou perseguição política, com artistas que também mais ninguém viu. 

Na exposição central, que decorreu no Mosteiro de São Bento, um lugar fundamental para a construção da diversidade brasileira, pois foi palco de lutas e combates entre colonos e colonizados, eram expostas obras que criavam um diálogo directo entre o passado e o presente. Marcelo Rezende não fala ainda de futuro porque “há a memória de um passado por encerrar”. No programa explicava-se: “O que aqui se reencena é o campo de batalha histórico no qual as Bienais da Bahia conheceram o seu destino; um lugar marcado por diferentes modos de dualismo: esquerda e direita, jovens e veteranos, conceito e forma, repressão e resistência, aberto e fechado, depressão e euforia, razão e desrazão. Todos compondo um processo no qual se procura anular o oponente, sem possibilidades reais de negociação.” Mas, 45 anos depois, onde nos encontramos, quando os artistas podem ter uma nacionalidade mas as suas identidades, bem como as das suas obras, não têm nem fronteiras nem respondem directamente às questões de raiz, lugar e origem. 

O director da Bienal da Bahia diz que “vivemos um tempo onde se tentam identificar quais foram, e quais são, os mecanismos possíveis para a construção da identidade brasileira”. Olhando em volta, é tentador tomar a parte pelo todo. Mas é falar com quem passa para perceber que há reflexão sobre o que possa constituir os diferentes modos de reacção às condições actuais impostas por esse mediatismo. Até nos exemplos mais pequenos. 

Cultura já não tem fronteiras

Manhã de sábado no Museu Carlos Costa Pinho, em plena Avenida da Vitória, a dos arranha-céus voltados para a baía e de costas para a cidade, e no jardim, várias crianças em roda cantam “uma canção de respeito em todo o mundo português”. A escolha é surpreendente: Atirei o pau ao gato. Depois explica a animadora: “Somos filhos e netos de índios. A cultura passa-se através da alegria e da tradição. É isso que nos diz quem somos e como devemos agir. Hoje dizem que esta é uma canção racista, como se o gato fosse o índio, ou o negro, como se o gato fosse a vítima. Mas os gatos estarão extintos? Isto é uma cançoneta e o que realizamos na fantasia não realizamos na realidade.” Como passar daqui para uma reflexão sobre as imagens que levam as gerações a pensar o seu lugar no Brasil contemporâneo? E, sobretudo, “o que existe de real nessas imagens?”, pergunta Marcelo Rezende. “O posicionamento artístico é reflexo da própria condição destes artistas. Alguns deles vivem fora do Brasil, porque o mercado já não tem fronteiras, ou então a nacionalidade nem é importante. O que fizeram como resposta à nossa dúvida foi potenciar um discurso que é [em si mesmo] diversificado.” 

O processo não será muito diferente para artistas de outras áreas. No festival de dança IC8-Interactividade e Conexão, que decorreu em Salvador de 21 a 30 de Agosto, a programação era composta por coreografias de quem vinha de diferentes estados — Curitiba, Belo Horizonte, Paraná, Rio de Janeiro, São Paulo — e depois se cruzava em programas de formação, de residência ou mesmo em co-produção na Europa, nomeadamente em França e na Alemanha. Alguns dos artistas, inclusivamente, chegavam a Salvador directamente de festivais que, na Europa, ocupam as programações das cidades. “É uma condição natural”, dir-nos-á Elisabeth Finger, 34 anos, que apresentou Buraco, Peça para Crianças “e Não Só”, estreada na Alemanha, onde residiu durante uns anos.

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No IC8, mostraram-se espectáculos vindos de vários pontos do Brasil. "Tira Meu Fôlego", o solo de Eduardo Fukushima no trabalho de Elisa Othtake e convidados (São Paulo) CORTESIA IC8 — INTERACTIVIDADE E CONEXÃO/ TIAGO LIMA

A coreógrafa faz parte de uma geração que “começou a criar porque era a única forma de se mover”. Tinha 22 anos, dançou para si e para outros, aprendeu a pensar na dança como um modo de pensar o que a rodeava, acreditando que o mundo poderia estar ao alcance de um movimento, desde que ele implicasse um compromisso social. “Fui muito militante, bati-me muito”, recorda sobre os tempos da campanha pela eleição de Lula da Silva, há já dez anos. “Fizemo-nos entender por um Governo que ajudámos a construir. Fomos a base de um Governo que nos deu de volta e que percebeu que tinha de existir um tipo de arte que não ganha à bilheteira, que nunca vai ser reconhecida nos media, que não vai lotar teatros. O que fazemos é para poucas pessoas, tomara que venha mais, vamos trabalhar para isso, mas é uma arte que tem de existir.” 

Foi em Curitiba, de onde é natural, que começou a perceber que as coisas podiam ser diferentes. O projecto Casa Hoffman, entretanto profundamente alterado, trazia à cidade vários coreógrafos que pediam apenas disponibilidade, sede de conhecimento e desejo de partilha. Depois, o frescor que a havia feito acreditar na dança como lugar de encontro foi-se diluindo, por efeito de um desinvestimento local num centro onde entrara em contacto com nomes que ainda hoje a ensinam. O fim da Casa Hoffman encontrou-a em fase de transição e rumou primeiro a São Paulo, depois ao Rio de Janeiro. Foi aí que percebeu que era em França, e mais tarde na Alemanha, que iria conseguir aprender a fazer o que mais queria. “Sabia que tinha de ir embora, para me mover de alguma forma”, diz. “A gente no Brasil vai catando, na Europa é tudo mais organizado. Sempre achei que o Brasil era um tesouro com muita coisa boa.” Mas por vezes não chega. Foram quase quatro anos fora, até ao momento em que nasceu a sua filha e, com ela, o desejo de regresso. “Temos uma habilidade de dar nós em pingos de água. Há uma falta de escrúpulos que permite tudo.”

Em 2014, ano de eleições com as presidenciais a 5 de Outubro, a coreógrafa pergunta-se sobre o impacto da descontinuidade, num meio que vive de políticas de editais públicos, que colocam os artistas em concorrência directa e lhes deixa pouca margem para uma reflexão mais atenta aos perigos da manipulação que o mercado liberal possa estar a criar, quando diz que está a ajudar ao desenvolvimento cultural através de incentivos financeiros. E pergunta-se ainda como essas permanentes rupturas, na arte por exemplo, fazem surgir outras narrativas que se assumem, e são assumidas, como identitárias: “Nunca tinha pensado como a falta de continuidade nos impede de ter um público que entende a arte como necessidade pública. Para eles, fica tudo tão efémero que as coisas que se repetem mais vezes no tempo ganham mais destaque. Se o Governo disser que não há mais verbas para o Carnaval, vai cair, mas Carnaval há todos os anos e vai ter sempre.”

Mesmo que nas ruas essa reflexão possa ser mais ausente, a relação entre a memória, a criação e o futuro é essencial para começarem a discutir-se as possíveis razões porque é ainda hoje difícil aceitar o determinismo da pergunta que assombrava a obra do historiador e diplomata Darcy Ribeiro, O Povo Brasileiro: “Por que o Brasil ainda não deu certo?” E porque é que há uma geração a perguntar se o Brasil que se vende lá fora é o Brasil cá de dentro.

Podíamos começar pela fé, ou voltar a ela, chamemos-lhe misticismo, “porque o Brasil também é isso de meter o Cristo na cruz para falar de um optimismo que está ligado à experiência mística”, como diz Augusto Roque, 32 anos pedagogo que coordena um grupo de professores responsáveis por um conjunto de acções de formação em comunidades em risco social. E partamos daqui para tentar compreender como é que no Brasil quando se diz “não tem jeito”, não vai ter jeito mesmo. Mas porquê?

O país somos nós

Horas antes da missa na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, na célebre gelataria A Cubana, por entre o canto desafinado de um grupo de adolescentes, na mesma mesa juntamos Augusto, Flávia e João Rafael e perguntamos que Brasil é este e para quem é ele. “Temos de nos aculturar desse processo de se ser rico. Rico sabe ser rico, mas a gente não”, diz Augusto, olhando para a mesa e abrindo os braços como se quisesse descrever quem naquela noite se juntou para assistir no SESC Pelourinho, um teatro ao lado da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, a Tombé, de Jorge Alencar, um dos espectáculos que integraram a programação do festival IC8-Interação e Conectividade. “O Brasil passou 500 anos como escravo e de repente descobre que é herdeiro de uma das maiores fortunas do mundo. É isso que estamos a viver agora que estamos sentados em muita riqueza. Carece ainda de experiência para saber viver com isso. A gente não sabe o que vai fazer, nem como o vai fazer.”

Flávia Couto, 29 anos, “índia sem tribo”, como gosta de dizer, é rosto de uma classe social que observa o crescimento do Brasil e se pergunta qual o seu lugar. É crítica de dança, mestranda na faculdade de Salvador, interessada, e preocupada, nas relações entre curadoria e crítica, portanto, nos modos de fixar e criar identidades e discursos através da arte. Descreve-se assim: “Pertenço à classe média trabalhadora, mas se parar de trabalhar hoje, amanhã sou pobre.” E, contudo, nunca essa condição a faz abandonar um pragmatismo feroz e orgulhoso que não admite que o discurso sobre o seu país seja composto a partir do lamento. “O país somos nós, não existe um país ao qual se chegou e que já estava pronto. O Brasil, mais do que qualquer outro país, está a crescer connosco. É como se fôssemos filhos dessa geração. Mesmo podendo ser pobre amanhã, sinto-me parte desse crescimento.”

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Durante o IC8, a oficina intitulada Honestidade: que tipo de arte te mobiliza? pedia aos participantes para se envolverem artística, social e politicamente CORTESIA IC8 — INTERACTIVIDADE E CONEXÃO/ TIAGO LIMA

E então olha à volta, para um quotidiano que tenta sobreviver “às imagens que lá fora se fazem”, e diz: “A gente pode conviver com essa afirmação de ficar pobre porque a condição de base da nossa estrutura são os acordos entre nós. Podemos falhar economicamente amanhã, mas nunca seremos pobres de relações. Vamos sempre ajudar-nos a sustentar essa condição no processo de conjunto que fazemos.” 

Crítica das imagens internas e externas que diminuem o Brasil a um conjunto de quadros-postais, do mesmo modo que Augusto recusa olhar para o Brasil — e para o que ele oferece aos que cá vivem — como “o país pacífico, doutor em diplomacia”, Flávia prefere olhar por dentro das coisas e descobrir através das fissuras que permitem “conviver num país que está em processo”. E então diz: “É o pacto social, maleável, amigável e flexível que permite que convivamos. Isso está inscrito nos nossos códigos genético e histórico. Os índios fizeram esses acordos entre si, depois com os portugueses, os espanhóis, os holandeses. É da nossa natureza.” Mas e o futuro? Ou, mais grave ainda, e o presente. Este Brasil é para quem? “Não há este Brasil sem estas pessoas que somos nós. Há todos estes faróis apontados ao futuro, mas a gente não arquitecta a nossa forma de pensar economicamente.” Felizmente, acredita. “Brasileiro não tem esse status self made man.” Tem o quê, então? Qual é a primeira imagem que uma geração que deveria ser a mais preparada tem de si mesma e do Brasil? “O hino nacional”, diz Augusto. Começa assim o hino: “Deitado eternamente em berço esplêndido, ao som do mar e à luz do céu profundo, fulguras, oh Brasil, florão da América, iluminado ao sol do novo mundo.” E Augusto reage: “Há esse devir, esse porvir, que tem tudo a ver com a primeira imagem que nos descreve: a vossa chegada. O Brasil é a prova de que, plantando, tudo dá.” Mas Augusto volta atrás na conversa e rebate a ideia de que estamos perante a mais bem preparada das gerações: “Esta geração ainda não é a mais preparada do ponto de vista do know how, [da capacidade] de aplicar conhecimentos técnicos e intelectuais [ao serviço do país]. O problema é de base: educação. Estamos no meio de um processo ao qual temos de nos acostumar para que possamos comandar intelectualmente o nosso país.”

Ri para não chorar

Há 20 anos, Darcy Ribeiro falava dessa condição natural, na monumental obra O Povo Brasileiro a que ele próprio regressava permanentemente como se a justificar a incompletude pelo desejo de se certificar de que algo já tivesse mudado: “A história nos fez, pelo esforço de nossos antepassados, detentores de um território prodigiosamente rico e de uma massa humana metida no atraso mas sedenta de modernidade e de progresso, que não podemos entregar ao espontaneísmo do mercado mundial. A tarefa das novas gerações de brasileiros é tomar este país em suas mãos para fazer dele o que há-de ser, uma das nações mais progressistas, justas e prósperas da Terra.” Vinte anos depois, onde estamos? Onde estão? E de que lugar falam?

“A gente tem recursos”, diz João Rafael Neto, 31, coreógrafo e bailarino, um só corpo a responder a um Brasil que são vários brasis. Filho de mãe paulista e pai carioca, de origens em Mato Grosso e criado na fronteira entre dois estados, a Bahia e Pernambuco, a viver em Salvador, é exemplo de como no Brasil muitas vezes a escolha se faz entre circular dentro do país ou para fora dele. É como se o seu discurso, que na sua contenção contraria a largueza dos seus gestos, quisesse responder ao difícil equilíbrio por entre a diversidade: “Há uma estrutura boa para se poder crescer socialmente, mas que, por uma série de hábitos, de questões culturais e formas de lidar com as coisas, não vai para a frente. Essas coisas são usadas como argumentos [para não avançar].” 

João Rafael chama-lhe, hoje, 20 anos depois de Darcy Ribeiro, “ressentimento”. E então diz: “Quando se deu a crise económica, o Brasil surgiu no meio dos países quase quebrados. Mas foi crescendo com uma condição financeira que não está directamente ligada ao povo, que é estrutural mas que não pode ser gerida de modo equívoco como tem sido até agora.” O trabalho de João Rafael Neto parece ser uma metáfora da difícil gestão do corpo em permanente desequilíbrio mas confiante nos seus intuitos. Em cima de uma bicicleta, investe sobre as praças das cidades ao som de Bolero, de Ravel, às vezes fundindo nos gestos da bicicleta os mesmos gestos que o coreógrafo Maurice Béjart havia criado em 1961 para a mesma composição. Mas, sobretudo, e tal como Béjart explicava no programa de estreia, “repudiando as facilidades do pitoresco exterior para exprimir unicamente — mas com que força! — o essencial”.  Às vezes é como se o movimento que o bailarino cria neste Bolero de quatro (criado em colaboração com o coreógrafo Luiz de Abreu) fosse a metáfora que se procura para responder aos desafios que enfrenta esta geração dita a mais bem preparada. 

Já pensou em ir-se embora, “já pensei várias vezes, mas às vezes tenho receio, outras vezes ainda há tanto para fazer aqui”. Às vezes, é como no samba de Gonzaguinha: “Eu acredito é na rapaziada/Que segue em frente e segura o rojão/ Eu ponho fé é na fé da moçada/ Que não foge da fera, enfrenta o leão/ Eu vou à luta com essa juventude/ Que não corre da raia a troco de nada/ Eu vou no bloco dessa mocidade/ Que não tá na saudade e constrói/ A manhã desejada…” 

O Brasil é um país onde há que aprender que “um e um não são dois, é outra coisa”. É isso que nos vai dizer, dias depois, Giovanni Luchinni, coreógrafo experimentado, figura da dança de Salvador que fez os palcos do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Miami e de Los Angeles, até regressar a Salvador e, 30 anos depois, perceber que as razões que o haviam levado a partir o impediam de continuar a viver na cidade. Mudou-se para o outro lado da Baía de Todos-os-Santos, na ilha de Itaparica, onde juntamente com os cães Elvis, Jimmy, Coco e Filé se distancia da realidade, observando-a com a sapiência que recusa a excentricidade que poderíamos ver num homem que faz os seus móveis, vende os mamões que caem da árvore e ainda não desistiu de criar um estúdio de dança onde hoje é uma oficina. 

“Quando dizemos que nos queremos libertar do colonialismo, criamos um neocolonialismo que é auto-induzido”, diz, fazendo referência àquilo que ele apelida de “falsificações do real”, como as mulheres vestidas de baiana para “compor uma imagem do Brasil”. “O turismo tornou-se um meio de se ser medíocre. Deu-se um esvaziamento [da identidade]. A mediocridade é a escolha e é uma escolha preguiçosa. É mais fácil fantasiar-se de baiano do que ser do contra, dizer que não e lutar. A revolta até pode vir no fim do dia, mas antes já colocaste um uniforme que foi animar aquele que paga.” Giovanni Luchinni, homem negro de forte porte, de mãos tão grandes que cabemos lá dentro, diz-nos alertando: “Recuso ser escravo. Os meus avós e bisavós já o foram. Eu não sou. Trabalhar para os outros não.” E resume aquilo que ele, aos 55 anos, gostaria de não ver repetido pelos que são mais novos: “A mediocridade é uma escolha, a inocência não.”

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Animação num dos vários espaços expositivos da 3.ª Bienal da Bahia Cortesia Bienal da Bahia/Rafael Martins

Para Flávia Couto, essa condição e “modo de operar brasileiro” é a verdadeira globalização. “Uma parte da nossa geração, entre os 25 e 35 anos, constrói redes de diálogo, com a ajuda das redes sociais para ter uma plataforma, nem que seja virtual, de diálogo e debate. Mas isso ainda está atrelado a uma atitude espontânea e autónoma, de uma parcela branca, com muitos filhos de pais universitários, que já cresceram assim.” Nas ruas, às vezes, como se viu na pré-Copa, com manifestações que juntaram milhares, para lá dos tumultos, as massas e as razões são mais diversas. Na praia de Alah, junto ao calçadão, há miúdos que rasgam os cartazes de plástico dos candidatos para construir papagaios que lançam aproveitando a brisa da orla marítima.

Por cima de tudo isto, a memória criada por Felipe Brandão, 23 anos, vindo do cinema e agora na comunicação, rapaz solto, sorriso ao qual ninguém resiste, mão certeira no batuque e voz queimada pelos cigarros, que não gosta de ser definido mas vai dizendo que nunca se quis embora. Uma definição apenas, para lá do que o trabalho que fez possa dizer dele: “Sou brasileiro.” Não admite que não se tenha orgulho no Brasil: “Sou mais patriota do que aquilo que a minha geração gostaria de admitir”, diz. As razões vêm de longe. Felipe é herdeiro de um dos heróis da independência do Brasil contra os portugueses, Rodrigo António Falcão Brandão, primeiro barão de Belém que se destacou na Batalha de Pirajá, em 1821. Mas o que ele é realmente é sambista de coração. É no samba que diz ser feliz. E talvez seja isso a diversidade do Brasil: “No samba, não há rico nem há pobre, só há sorrisos porque o dinheiro de nada vale. No samba sorrio.” Felipe canta e ri, como diz a canção de Caetano, ri “para não chorar”. E canta:

Quem tem como pagar,
a mim, não deve nada
a vida só nos leva,
se for mal levada
amigo é pra ser grátis,
não vem me comprando
Judas vendendo Cristo,
você me marcando,
você me traindo com o seu sorriso tão vil

minha cabeça no prato rolou como bola no campo,
meu peito doeu, se partiu
Você me lançando um olhar de hiena sutil

esperando pra agarrar a presa,
que logo escapou de você,
Fugiu.

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