De uma remota aldeia do Níger para o mundo

Depois de Bombino, a música tuaregue vinda do Níger chega à Europa pelas mãos de um grupo feminino. Les Filles de Illighadad estreiam-se esta semana em palcos portugueses.

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Les Filles de Illighadad Christopher Kirkley

Illighadad é uma pequena povoação rural no centro do Níger, longe de tudo, demasiado remota para se imaginar a ser inscrita em qualquer mapa da cultura local, muito mais improvável ainda de acreditar que pudesse galgar fronteiras e espalhar o seu nome fora do continente africano. Só que a lógica, felizmente, tem um papel modesto quando confrontada com a atenção que a música carregada de verdade por vezes exige.

Os ouvidos ocidentais despertaram nos anos mais recentes para a música vinda do Níger graças àquele que foi aclamado como “o Jimi Hendrix do deserto”. Bombino, depois dos Tinariwen terem mostrado ao mundo que a música tuaregue se dava bem com a electricidade, tornou-se a figura mais proeminente do país no circuito internacional, depois de uma trágica história de deslocação motivada pela guerra e em que perdeu alguns dos músicos que o acompanhavam. A história de Fatou Seide Ghali não será tão impressionante, mas é tudo menos fácil.

No Sahel, região africana compreendida entre o Sahara e a savana sudanesa, e na cultura tuaregue o papel da mulher não costuma estar reservado a grandes voos musicais. Espera-se que se dedique à família e à vida comunitária, mas não que tome um instrumento nas mãos para tocar e cantar sobre os seus dias. Muito menos se admite que na música possa procurar o seu sustento e viajar. Mas foi exactamente isso que Fatou Seide Ghali se propôs fazer. “Comecei por tocar takamba [música dos griots tamasheq] com os meus amigos fulas [pastores da região do Sahel e do Sahara] quando partia para as pastagens”, conta ao PÚBLICO Fatou, figura central do grupo Les Filles de lllighadad, que esta quarta-feira iniciam no B.Leza, em Lisboa, uma pequena digressão portuguesa.

“Um dia o meu irmão mais velho chegou a casa com uma guitarra acústica, pôs-se a tocar com os seus amigos e nesse dia apaixonei-me pelo instrumento”, relata a música. “Quando ele saiu de casa, tomei a guitarra de empréstimo sem ele saber para começar a tocar, aprendi aos poucos, escondida de quaisquer olhares, não foi nada fácil.” Apesar de ter desenvolvido as suas capacidades na sombra, Fatou não desanimou, domou a guitarra e acabou por juntar-se à prima Alamnou Akrouni para criar Les Filles de Illighadad, cuja música deriva sobretudo da takamba, “mas também de todas as canções e músicas haoussa [um dos principais dialectos africanos] vindas da vizinha Nigéria”. “E gostamos muito também da música dos filmes indianos”, acrescenta.

Para Fatou, a ideia de se juntar a outras mulheres (em palco são frequentemente três e só de forma intermitente se apresentam também com um primo) era fundamental por “estarem sempre em casa, não receberem educação e muitas vezes na escola nem terem a possibilidade de se formar”. “Então quis agarrar esta oportunidade graças ao nosso conhecimento do tende (o instrumento de percussão tradicional das mulheres tuaregues) para formar este grupo de mulheres e procurar a possibilidade de viajar pelo mundo com a nossa música.”

Viajar para o exterior pode ser um problema quando a cultura religiosa dominante (muçulmana), as famílias e a sociedade tuaregue no geral não demonstram grande abertura para com essas liberdades, e até mesmo o casamento constitui um entrave, “particularmente na questão dos casamentos forçados (com raparigas muitas vezes demasiado jovens)”, relata. “Mas através da música e dos textos das canções tentamos fazer passar as mensagens e advertir as nossas irmãs, dizendo-lhes que podem também lutar e fazer as suas próprias escolhas nas vidas que querem ter.”

São essas algumas das temáticas – que passam também pelas histórias do dia-a-dia dos tuaregues, pela religião, pelo amor e outras mensagens dirigidas às suas comunidades – que Les Filles de Illighadad apresentarão nesta sua estreia por palcos portugueses – quarta-feira no B.Leza; quinta na Casa da Música (Porto, entrada gratuita); sexta no Festival Islâmico de Mértola; e sábado na Casa do Povo de Santo Estêvão (Tavira).

A digressão coincide com a edição pela Sahel Sounds do seu EP de estreia, registado num estúdio ao ar livre montado no deserto, em que a temas ancestrais se juntam as novas composições de Fatou Seide Ghali – “inspiradas pelas músicas que nos rodeiam e embalam desde sempre”.

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