Uma dança de poder e manipulação com vista para a Cuba dos Castro

Hamm, paraplégico e cego, manipula o também deficiente Clov numa implacável coregrafia de domínio e submissão. Tania Bruguera encenou Endgame, de Beckett, implicando fisicamente o espectador.

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Hamm (Brian Mendes) e Clov (Jess Barbagallo), os dois protagonistas da peça de Beckett PAULO PIMENTA
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Tania Bruguera num intervalo dos ensaios de Endagame no Mosteiro de São Bento da Vitória PAULO PIMENTA
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Bruguera confiou o papel de Clov ao dramaturgo e performer Jess Barbagallo PAULO PIMENTA
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A rede de estrados metálicos que rodeia o cilindro onde decorre a peça PAULO PIMENTA
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A encenadora dando os últimso retoques no caixote do lixo de Nell (Lara Ferreira) PAULO PIMENTA

Quem entrar por estes dias no claustro barroco do Mosteiro de S. Bento da Vitória depara-se com um gigantesco tubo de mais de seis metros de altura, feito de um tecido branco elástico e resistente, e rodeado de uma densa estrutura de estrados metálicos. É o insólito cenário que a artista e activista cubana Tania Bruguera, mais conhecida como performer e autora de instalações, idealizou para a sua encenação da peça Endgame, de Samuel Beckett, que tem esta quinta-feira estreia mundial no Porto, no âmbito da BoCA (Biennial of Contemporary Arts).

Originalmente escrita em francês com o título Fin de Partie, e depois traduzida para inglês pelo próprio Beckett – as edições portuguesas têm optado por Fim de Festa ou Fim de Partida –, Endgame, estreada há 60 anos em Londres, passa-se num aposento nu, com uma porta que dá acesso a uma cozinha que nunca se vê, e duas pequenas janelas de difícil acesso, que abrem para um mundo aparentemente deserto e devastado. No interior, um cego paraplégico, Hamm, e um homem que funciona como seu servo, Clov, cuja perna rígida não lhe permite sentar-se, mantêm uma sufocante relação de poder e manipulação. E também de interdependência, já que nenhum deles parece ser capaz de abandonar o outro, ainda que Clov constantemente afirme querer fazê-lo. Completam o elenco os pais de Hamm, Nagg e Nell, que perderam as pernas num acidente e vivem no interior de caixotes do lixo.

Artista política, com uma obra que lida de diversas formas com os tópicos do poder, do controlo, da manipulação, Tania Bruguera apaixonou-se por esta peça de Beckett à primeira leitura e há muito que sonhava encená-la um dia. E quando surgiu o convite do director artístico da BoCA, John Romão, e este lhe explicou que a lógica da bienal era justamente a de tentar “desviar” os artistas da sua zona de especialização, não deixou escapar a oportunidade. “Há 20 anos que queria fazer isto”, diz Bruguera ao PÚBLICO. “Não sei se as pessoas vão gostar ou não, mas eu sinto-me completamente realizada”.  

E se é a sua estreia absoluta na encenação, o texto de Beckett está tão próximo das suas preocupações e obsessões enquanto artista que não sente muito esse peso. “Não vejo nada isto como uma coisa diferente do que venho fazendo”, garante. E o que vem fazendo inclui, por exemplo, aparecer em público nua e com uma carcaça de carneiro ao pescoço, e comer terra durante 45 minutos, como sucedeu numa performance de 1997 em Havana, ou convencer os seus compatriotas cubanos a pegarem num microfone e dizerem num minuto o que lhes viesse à cabeça, como fez em 2009 para extremo desagrado do regime, que desde então já a deteve várias vezes, ou ainda viver durante um ano num pequeno apartamento dum bairro de Queens, em Nova Iorque, com cinco imigrantes e respectivos filhos.

Também propôs a criação de um partido transnacional de emigrantes a sedear em Paris e lançou recentemente em Havana o INSTAR (Instituto de Artivismo Hannah Arendt), convidando artistas e activistas de todo o mundo a colaborarem com os cubanos na democratização do regime, e estimulando os seus compatriotas a candidatarem-se a cargos públicos. Para dar o exemplo, ela própria anunciou que se candidataria à presidência de Cuba nas eleições anunciadas por Raul Castro para 2018.

Filha de um dos fundadores do Partido Comunista de Cuba, Miguel Brugueras del Valle, depois diplomata e vice-ministro dos Negócios Estrangeiros de Fidel Castro, Tania vive dentro e fora do país e mantém uma relação tensa e complexa com as autoridades cubanas. Mas o seu extenso e reconhecido percurso como artista internacional nunca a afastou das suas raízes. “Cuba é um ponto de referência na minha obra, porque me interessa compreender como o poder utiliza as pessoas, e todas as cumplicidades implicadas nesse processo”. O fenómeno é universal, reconhece, “mas em Cuba, como é uma pequena ilha, as coisas tornam-se ridiculamente claras”.

Um espectador consciente

Mantendo uma rigorosa fidelidade ao texto de Beckett, este Endgame nem por isso constitui excepção a essa presença obsessiva de Cuba na sua obra, e e nem seria preciso notar que o protagonista, o manipulador Hamm, ostenta uma barba suspeitosamente castrista que não consta das minuciosas indicações cénicas do dramaturgo.

Contando com um notável Brian Mendes – actor da prestigiada companhia de teatro experimental New York City Players, de Richard Maxwell – no papel de Hamm, e com o artista e performer Jess Barbagallo a compor um não menos convincente Clov, a peça, falada em inglês, inclui ainda Lara Ferreira e Pedro Aires dando respectivamente corpo a Nell e Nagg. Corpo, mas não voz, já que essa é assegurada, em off, por Chloe Brooks e Jacob Roberts.    

Mas a grande inovação da abordagem de Bruguera está no dispositivo cénico que concebeu, que envolve os espectadores na peça de um modo pouco convencional: não apenas a vêem a partir de cima, como se vêem uns aos outros. Os estrados que rodeiam essa espécie de asséptico tubo de ensaio gigante em cujo fundo decorre a acção permitem que o público se posicione, à sua escolha, a dois, quatro ou seis metros de altura. Em cada um destes níveis, o tecido que compõe o cilindro central apresenta pequenos rasgões nos quais o espectador enfia a cabeça para seguir a peça, vendo ao mesmo tempo uma colecção de outras cabeças sem corpo a espreitarem a toda a roda.

Assistir a uma peça de uma hora e tal em pé, encostado a um estrutura de ferro recoberta por uma teia de arame, e curvado para a frente, com a cabeça enfiada num pano, não é particularmente confortável, mas a ideia foi mesmo essa. “Era importante que não fosse completamente cómodo, queríamos que o espectador estivesse consciente do seu corpo”, diz Bruguera.

Uma solução que também torna a assistência mais consciente das implicações práticas das diferentes limitações físicas dos protagonistas. “Queremos que o espectador sinta que pode ser cada uma das duas personagens”, explica a encenadora. Essa simetria entre mestre e servo, já sugerida no texto de Beckett, é sublinhada na encenação de Bruguera: “Hamm tem uma camisa larga e não tem calças, e Clov tem calças mas está em tronco nu, como se fossem duas metades da mesma coisa”, observa a artista.

A ideia de pôr a assistência a olhar para baixo é que implicou um ligeiro desvio às indicações de Beckett. Presumivelmente para acentuar essa complementaridade entre Hamm e Clov, o dramaturgo imaginou o primeiro sempre sentado, precisamente a posição vedada ao segundo. Mas neste Endgame Hamm está mais deitado do que sentado na sua cama de rodas, já que doutro modo os espectadores não lhe veriam o rosto.  

O que mais interessou à criadora cubana nesta sua primeira encenação – que pode ser vista esta quinta-feira às 15h e às 21h e na sexta-feira às mesmas horas – foi “mostrar que a manipulação se faz através dos sentimentos do outro, não é uma violência directa, é como uma coreografia de poder, com um a submeter e o outro a ser submetido”. E tanto podia estar a falar da peça como da sua interminável dança com o regime cubano. 

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