Da lista de Khrennikov ao hino bolchevique

Um concerto integralmente dedicado à música soviética, com dois programas complementares mas não totalmente equilibrados.

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A soprano ucraniana Christina Daletska

O ciclo Música & Revolução, já na sua 11.ª edição, tem permitido (re)descobrir composições relacionadas com ímpetos e momentos revolucionários da História, quer pelo seu engagement ideológico quer pelos conteúdos artísticos inovadores que veiculam. Constitui também este ciclo da Casa da Música uma oportunidade de conhecer obras que, por serem demasiado datadas ou estarem irremediavelmente ligadas a contextos específicos, são muitas vezes votadas ao esquecimento. O concerto de dia 29, Sinfonia para a Revolução, foi composto por bons exemplos de criação musical em contexto soviético, evidenciando os efeitos da repressão artística por parte do regime totalitário.

A primeira parte, interpretada pelo Remix Ensemble e pela soprano ucraniana Christina Daletska, sob a direcção de Pedro Neves, integrou obras de Elena Firsova e de Edison Denisov – dois dos “Sete de Khrennikov”.

Music for 12 (1986), de Firsova, revisita a música do romantismo tardio e do expressionismo inicial. Semelhante a um exercício de composição estilística, esta obra foi, por esse motivo, a menos interessante do programa. Apesar do conservadorismo da escrita musical, o seu discurso polifónico sempre transparente exige uma interpretação sensível e equilibrada. A do Remix apontou neste sentido, muito embora algumas entradas descoordenadas tenham prejudicado pontualmente a fluidez do discurso musical.

A cantata Earthly Life (1984), para voz solo e ensemble de câmara (género predilecto de Firsova), propôs uma direção composicional totalmente diferente. O discurso musical deixa transparecer um lirismo próximo da segunda Escola de Viena, embora em determinadas passagens vocais e instrumentais se sinta alguma influência de compositores do pós-Segunda Guerra Mundial, nomeadamente de Pierre Boulez. Apesar destas influências, a cantata apresenta um conjunto de características peculiares que atestam a originalidade de Firsova. Recorrendo à poesia de Osip Mandelstam (o seu poeta preferido), a compositora demonstra uma grande sensibilidade na expressão do conteúdo poético, resultando num discurso musical delicado, no qual predominam intensidades suaves e combinações tímbricas subtis, em perfeita sintonia com os versos de Mandelstam.

A interpretação de Daletska adequou-se ao intimismo e à finura de Earthly Life. A soprano demonstrou graciosidade e excelente controlo da intensidade. No registo agudo a sua voz foi leve e cristalina (nem sempre conseguindo sobrepor-se à sonoridade instrumental, é certo), enquanto no registo grave se revelou envolvente, com maior ressonância e capacidade de projecção. Esta diferença entre os registos vocais foi provavelmente a característica menos positiva da interpretação desta jovem cantora.

A Sinfonia de Câmara nº 2 (1994) de Edison Denisov proporcionou um interessante contraste relativamente à música de Firsova. De pendor mais vanguardista, devido à maior complexidade e densidade do discurso musical, a obra é viva e enérgica, com surpreendentes mudanças do timbre instrumental e da textura sonora. O Remix Ensemble realizou uma interpretação segura, embora por vezes menos vigorosa do que o exigido pela partitura de Denisov.

A segunda parte do concerto foi exclusivamente dedicada a Dmitri Chostakovitch, destacando-se a Sinfonia nº 2, composta em 1927 para celebrar o décimo aniversário da Revolução de Outubro. Em palco estiveram a Orquestra Sinfónica e o Coro Casa da Música dirigidos pelo maestro Vassily Sinaisky – internacionalmente reconhecido pela sua larga experiência na interpretação de repertório russo.

A sinfonia foi antecedida pela interpretação de duas breves danças da suite do bailado O Parafuso (1930-34), obra que deixa transparecer o espírito mordaz do compositor e também a sua capacidade de caracterização musical. É pena que o programa não tenha contemplado mais peças desta suite, mas possivelmente a duração da primeira parte do concerto não o permitiu.

A referida Sinfonia nº 2, obra pouco convencional ao nível da forma e do conteúdo, divide-se, apesar de estar escrita num só andamento, em duas partes contrastantes: a primeira, exclusivamente instrumental, é de cariz modernista pelo discurso atonal; a segunda, mais tradicional, é um hino ao movimento bolchevique e remete-nos claramente para a sua função política. Apesar de alguma dessincronização rítmica na secção inicial, a orquestra revelou bom equilíbrio entre os diferentes naipes. O coro, que canta apenas na segunda parte da sinfonia, revelou equilíbrio sonoro embora por vezes se tenha sentido falta de um maior volume vocal.

Em suma: uma primeira parte que permitiu (re)descobrir compositores pouco apresentados nas salas de concerto portuguesas; uma segunda dedicada exclusivamente à música sinfónica de Chostakovitch, num programa que se revelou desequilibrado pela diferente duração dos dois momentos, que apenas se justifica no âmbito de um ciclo que promove a complementaridade de programas.

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