Da Factory para o mundo

Foto
Billy Name

A fotografia no viveiro pop de Warhol. É uma das exposições-estrela do PHotoEspaña. Estão lá as folhas de alumínio, as Polaroid e os candidatos a celebridades

Os reflexos sempre tiveram uma relação agridoce com a fotografia - quando aparecem nunca se sabe bem se é defeito ou feitio. Vinda de um fotógrafo, a acção de forrar a prateado um lugar onde vai trabalhar parece, no mínimo, arriscada, não fosse esse lugar a Factory, viveiro de arte caleidoscópico, concebido para ver, ser visto, ver quem vê, ver o reflexo, a sombra, o original, a cópia, o duplicado, o triplicado... Quando se tornou fotógrafo da casa, em meados dos 60, Billy Name já tinha o quarto forrado com tinta prateada e folhas de alumínio. Andy Warhol viu e gostou tanto que lhe pediu uma cópia da decoração para o atelier. E com o prateado vieram também os espelhos partidos, por onde já andavam máquinas de imagem de toda a natureza e feitio. A Factory sempre se deu bem com objectivas e é Name quem fornece (em entrevista a Collier Schorr, 1997) a metáfora perfeita para o que se passava no seu interior: "Andy era fascinado por qualquer coisa tecnológica. Era como se a Factory se tivesse transformado numa câmara de caixa grande - entrava-mos nela, ficávamos expostos e revelávamo-nos." Este festim exibicionista, saturado e performativo alimentava-se da imagem e, logo, vivia bem com reflexos imediatos, estivessem eles na superfície de uma Polaroid, nos quadrados de uma fotomaton ou na distorção devolvida pelo espelhado das paredes.

Com luzes ténues, chão preto e parte das paredes pintadas a negro, o piso subterrâneo do Teatro Fernán Gómez, de Madrid, está mais perto da imagem de uma camera obscura do que de um lugar onde o momento exacto do disparo de um flash parece congelado. Mas, por estes dias, há pelo menos uma parede forrada a prateado para que quem visite a exposição De la Factory al Mundo. Fotografía y la comunidade de Warhol tenha a sua dose de reflexo e possa experimentar uma nesga da estética proto-glam que ficou como uma das imagens de marca do atelier, casa de festas, lugar de experimentação que foi a primeira morada da Factory, no número 231 da rua 47, de Nova Iorque. Com lugar cativo na secção oficial do PHotoEspaña 2012, aquela que é exposição-estrela (não podia estar lá de outra maneira) entre as mais de 300 inaugurações agendadas para a edição deste ano mostra obras de dez artistas visuais com registos e métodos de trabalho muito distintos (Richard Avedon, Cecil Beaton, Stephen Shore, Billy Name...). São singularidades que formam um mosaico rico e que dão uma panorâmica da diversidade da fauna que vivia na Factory, que passava por ela e que a admirava. Apesar do ambiente "sempre em festa", a comissária Catherine Zuromskis, historiadora de arte e especialista em imagem vernacular, fez questão de sublinhar no dia da inauguração (com as folhas de alumínio como cenário, claro) que "havia também quem a criticasse" e "achasse que era palco de excessos" (o trabalho fotojornalístico de Nat Finkelstein é dos que procura maior desapego aos ideais pop de Warhol).

Andy Warhol, já se sabe, vivia obcecado com as imagens ("Uma das boas razões para me levantar de manhã é saber que tenho um rolo de fotografias para revelar"). Alguém que abraçou a multiplicidade, a cópia e a serialidade como ele só podia ter com a fotografia na Factory uma relação do tipo "amigo que pode aparecer e entrar sem ser convidado". A máquina de produção em série em que se transformou "a oficina" warholiana precisava da imagem fotográfica para garantir o máximo de publicidade e alarde, mas a relação de Andy com o suporte em si e os mecanismos que o criam esteve sempre longe do cânone e de um uso que se possa chamar profissional. Achava demasiado complicado ter de pensar em vários pormenores técnicos antes de disparar. Preferia a instantaneidade à nitidez, a informalidade à exposição correcta ou à composição equilibrada. Fascinava-o a vulgaridade, a rapidez, a fotografia vernacular e o amadorismo (juntou caixas de fotografias que os clientes de laboratórios desistiam de levantar).

Da fotografia enquanto suporte comercial, interessava-lhe sobretudo a sua fecundidade, mecanismo gerador de infinitas imagens, poderoso meio de convencer, de registar e de transmitir mensagens de leitura universal. E por isso procurou máquinas e formatos que lhe facilitassem o registo puro e duro do que lhe aparecia pela frente (tinha dezenas de máquinas compactas e gastava em média um rolo de 36 exposições por dia). E por isso também deixou para outros a tarefa de documentar com outro pendor estético, porventura mais próximo da convenção, a dinâmica social e o frenesi criativo que atravessou as diferentes moradas da Factory.

Name, o surfista prateado

Talvez a máquina de imagens em que se transformou a Factory não tivesse tido o sucesso que veio a ter sem o trabalho fotográfico de Billy Name, um dos responsáveis pelo mito prateado em que se transformou o estúdio durante os anos 60, não tanto por ter forrado as paredes, mas por lhe ter dado imagem. Name, que trabalhava como iluminador de palco, foi contratado por Andy para fazer um registo exaustivo dos processos criativos e do quotidiano do atelier que incluía todo o séquito warholiano (Edie Sedgwick, Mary Woronov, Ondine, Candy Darling...). Como fotógrafo da casa, tinha o privilégio de presenciar os instantes de maior descontracção no grupo. Apesar de ter feito imagens a preto e branco e a cores, são as primeiras que melhor conseguem definir o espírito da casa e aquelas que permanecem no imaginário cultural, talvez graças à sua queda para as superfícies refulgentes, para os contrastes acentuados e dramáticos.

Como sinal de que tudo se passava com uma grande dose de informalidade e de que Andy Warhol nunca achava demais o registo fotográfico daquilo que fazia, Stephen Shore ainda andava na escola secundária quando recebeu um sim para entrar com a sua câmara na Factory. Sem o nunca o rejeitarem, os habitués do estúdio também nunca o aceitaram, uma tensão revelada em muitos olhares desconfiados e até reprovadores. As imagens de Shore são de composição cuidada, preferem isolar os sujeitos em poses alienadas, focam pormenores da floresta warholiana só possíveis de vislumbrar por alguém que vem de fora e até resvalam para o trágico-cómico, como a profética imagem de uma mulher a apontar uma pistola de brincar à cabeça de Andy Warhol.

Num extremo oposto ao fulgor narrativo das fotografias de Shore, estão as Polaroid de Brigid Berlin, uma das superestrelas elevadas pela Factory, e as tiras de fotomaton com que Andy Warhol se deslumbrou durante anos. Quando se tratava de captar a camaradagem e o rodopio social à volta do grupo, ambos cultivaram um gosto particular por formatos vernaculares. No final dos anos 60, Brigid Berlin terá sido uma das primeiras a experimentar polaroids com dupla exposição. Fez retratos incisivos e sobreiluminados, deixando uma das facetas imagéticas mais cruas do ecossistema humano que gravitava à volta Warhol. A par do negativo quadrado da Kodak Instamatic, a Polaroid foi também um dos formatos preferidos de Andy que captou sobretudo naturezas mortas e nus masculinos.

Andy, agarrem-no se puderem

Tido como distante no trato e emocionalmente frio, Andy Warhol podia estar no centro de tudo, mas não queria (ou não queria que parecesse que queria) ser o centro de tudo, não fosse ele contra o endeusamento da noção de autoria. Em Just Kids (Apenas Miúdos, Quetzal, 2011), Patti Smith escreve que Andy costumava comportar-se como "uma enguia", alguém que era "perfeitamente capaz de se esquivar a qualquer confronto significativo". Uma imagem certeira dessa postura esquiva é a fotografia panorâmica de grandes proporções feita por Richard Avedon, onde o fundador da Factory surge de braços cruzados, a um canto da imagem e a olhar para fora dela, como se estivesse plenamente consciente do perigo de eclipsar o seu séquito de superestrelas queer.

A presença da imagem fotográfica na Factory foi absoluta, epidérmica e obsessiva. A exposição do PHE tem a virtude de mostrar em proporções equilibradas registos mais próximos do documento puro e instantâneos do quotidiano, da intimidade e da dependência de uma comunidade em gerar imagens. Os objectivos: chegar a um público cada vez amplo e heterogéneo, chegar à difusão, ao consumo e à consciência globais.

Apesar de omnipresente na sua vida e na vida do espaço que funcionava como uma extensão natural da sua existência, Andy Warhol dá a entender, durante uma entrevista à American Photographer, em Outubro de 1985, que usa o suporte fotográfico apenas porque sim, apenas porque costuma sair sempre de casa "com uma câmara no bolso", como quem calça os sapatos para não andar descalço. Nos últimos anos de vida, Andy continuou a fotografar compulsivamente, mas cada vez mais fora do universo da Factory e num registo pessoal. Através destas imagens, vemos como ele viu o mundo fora do conforto do seu espaço e dos rostos familiares. Como não podia deixar de ser, as milhares de fotografias que resultaram de deslocações por todo mundo tiveram, pelo menos, um espectador, o fotógrafo Christopher Makos. Ou seja, alguém de confiança que pudesse continuar a registar o "espectáculo visual Andy". Makos não era um fotógrafo extraordinário, mas o jogo de imagens que conseguiu estabelecer com Andy a fotografar em contextos estranhos ao seu habitat resistem como poderosos documentos, abrem portas a um diálogo visual incessante. Diálogo que está na fotografia de Makos que encerra a exposição, onde Andy surge de câmara pronta a disparar. O título: Andy Shooting Me, and You Too.

Veja uma galeria com imagens de todos os fotógrafos na versão do Ípsilon para tablets.?

O jornalista viajou a convite da organização do PHotoEspaña e da Tour Madrid.

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