Da Argentina, com angústia, o rumor surdo da violência

El Ciudadano Ilustre, da dupla Mariano Cohn e Gastón Duprat, trouxe um Nobel da Literatura (e a sua circunstância) para o concurso do Festival de Veneza.

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A dupla de cineastas argentinos por trás de El Ciudadano Ilustre: Mariano Cohn e Gastón Duprat
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Spira Mirabilis
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A dupla de cineastas por trás de Spira Mirabilis: Massimo D'Anolfi e Martina Parenti

Um jornalista argentino interrogava-se se os jornalistas italianos no Festival de Veneza – por extensão, todos os não-argentinos – conseguiriam partilhar “a angústia” que sentiu enquanto via El Ciudadano Ilustre, de Mariano Cohn e Gastón Duprat (concurso). Ficara com a impressão contrária, a julgar pelos risos que completavam várias sequências do filme. Daqui queremos dizer-lhe que sim. E que a angústia faz parte dos risos.

O cidadão ilustre do título chama-se Daniel Mantovani, é um (fictício) Nobel da Literatura. Começamos El Ciudadano Ilustre com o escritor a receber a distinção, e admiramos a sua lucidez, a inteligência que cria e equilibra a performance da inquietação: diz ele no seu discurso, dirigindo-se a uma realeza que não venera nem respeita, que o prémio significa que se tornou unânime, logo que o seu trabalho acabou. Palmas, da assistência do Nobel dentro do ecrã e da assistência do filme em Veneza que, logo à primeira sequência, encontrou em Daniel Mantovani (interpretado por Oscar Martínez) a sua identificação, um igual, a possibilidade de projecção segura num ilustre e crítico observador da natureza humana.

Mas depois Daniel, que não aceita pedidos de entrevistas, palestras e fotografias, aceita, algo misteriosamente e a contracorrente, o convite para regressar a Salas, pequena cidade argentina onde nasceu, de onde saiu há mais de 40 anos para o mundo cosmopolita e onde vivem, sem dali terem alguma vez conseguido sair, as pessoas que inspiraram personagens dos seus livros.

Vamos com ele, que vai ser recebido como herói. Rimos primeiro do provincianismo, da pequenez, que se quer pegar a Daniel, de que ele se desembaraça com elegância (mas desembaraça-se ele do paternalismo?). Começamos a assustar-nos depois, ao mesmo tempo que Daniel, quando a recepção muda de tom, quando o silêncio do passado privado do escritor se exibe vergado mas ainda dorido, quando mais publicamente irrompem os ressentimentos para com o conterrâneo que se tornou célebre e “europeu”. O nacionalismo, a xenofobia, o provincianismo são universais, os argentinos é que têm sabido, e vários filmes o mostram, fazer ouvir o rumor surdo da violência. El Ciudadano Ilustre é novo feito, um complot, orquestrado sem possibilidades de fuga, por um par de cineastas e por um argumentista (Andrés Duprat), para a inquietação e o desconforto de quem vê. Essa interacção entre o ecrã e a sala (a tal angústia) é fundamental, responsabilizando o espectador pelas suas projecções e adopções. No final, vemos o distinto observador da natureza humana a produzir nova obra, resultante da sua experiência e da violência que encontrou no seu passado. Como se se tivesse regenerado. As palmas que, dentro do ecrã, recebem o anúncio de nova obra, desta vez não têm o mesmo eco na sala de cinema. Desta vez o que se aplaude não é Daniel Mantovani, é um ilustre observador da natureza humana, o filme.

No tubo de ensaio

“Regenerar”… são os próprios cineastas, o casal Massimo D’Anolfi e Martina Parenti, há dez anos a trabalhar juntos e a fazer tudo nos filmes, que desta forma indicam o que os leva de um a outro: algo do anterior, que parecia encerrado, sobrevive para possibilitar outra vida. E algo do anterior, L’Infinita Fabbrica Del Duomo (2015), sobre as estátuas da Catedral de Milão, passou para Spira Mirabilis, instigado pelo maravilhamento de um cientista japonês que passa os dias a estudar as capacidades regenerativas de uma medusa, convencido de que isso ajudará a resolver a busca humana pela imortalidade.

Spira Mirabilis é um documentário – podemos sintetizar assim para simplificar, embora pareça um corpo líquido que nunca se compromete para sempre com uma forma – em que, à historia do cientista, D’Anolfi e Parenti juntam mais três, e ainda Marina Vlady a ler Borges, que palpitam com a aventura humana que esbraceja com a (i)mortalidade. Mas é como se espreitássemos para dentro de um tubo de ensaio. Num laboratório em que o cientista não consegue partilhar o seu entusiasmo. Cremos que a selecção na competição de Veneza de Spira Mirabilis é mais um gesto exótico dos programadores para mostrar “arte” do que crença num projecto aberto para a competição principal. O que fecha Spira Mirabilis ainda mais no seu tubo de ensaio.

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