Cut Short

1. Entre fechar um livro e mudar do Alentejo estava difícil uma ida conjunta a Torres Vedras para ver a exposição que o Pedro Letria lá montara. Ele foi propondo combinações de gente e transportes até que in extremis houve fumo branco. Literalmente, o sábado em que a exposição acabava, 1 de Novembro. Juntámo-nos em Lisboa, no Jardim Constantino, onde eu não ia há séculos. Pensei no Manuel Hermínio Monteiro a caminho da Assírio & Alvim, onde o Pedro também publicou livros. Foi, aliás, assim que nos conhecemos, eu entrevistei-o por causa de um livro de fotografia, creio que o Mármore. E foi através dele que conheci outros fotógrafos do colectivo Kameraphoto, hoje amigos de muito lastro. A Kamera já não existe como tal, mas os amigos continuam, dos dois lados do Atlântico. O Jordi Burch tinha voltado há dias para São Paulo, e da esplanada do jardim fizemos um skype para Buenos Aires, onde está o João Pina. Quando arrancámos pela A8, o sol dobrava a tarde, dois carros de gente. Naquele em que eu estava falou-se da festa mexicana dos mortos, porque era véspera disso. De resto, eu não sabia nada de ao que ia, lá em Torres.

2. O Pedro Letria cresceu em Inglaterra e até hoje faz jus a essa discrição: queria que eu visse a exposição, especialmente esta, mas não explicara porquê, do que se tratava.

3. Se alguma vez estive no centro histórico de Torres Vedras, não me lembro daquela luz, daquele castelo, daquela Rua dos Cavaleiros da Espora Dourada, por onde metemos a pé até à galeria da Cooperativa de Comunicação e Cultura (CCC). E foi só ao passar a porta que li, no texto introdutório: “Cut Short é uma exposição que reúne fotografias e textos produzidos e coleccionados por Pedro Letria por altura de uma viagem à Faixa de Gaza em 2009.”

4. Há muitos caminhos para casa, muitas casas na cabeça, acreditando que avançamos pela soma e não pela redução. É uma velha crença antropófaga, eu acredito. Gaza, via Torres Vedras.

5O texto continuava: “Tendo chegado ao território palestiniano em Julho, seis meses depois do fim da operação militar israelita Cast Lead, Letria foi recebido pela agência noticiosa Ramattan, que lhe facultou a sua agenda diária e uma mesa de trabalho na redacção. Ao longo da semana seguinte, cobriu os acontecimentos que mereceram a atenção dos media locais, fotografando, entrevistando e escrevendo as suas impressões e reflexões num pequeno caderno de capa negra.”

6. Estive em Israel e em Gaza durante a Operação Cast Lead, enquanto repórter, nesse começo de 2009. Quando voltei, o Pedro estava a preparar a sua viagem. Conversámos: pessoas, lugares. E agora a sequência disso estava ali na parede, uma conversa retomada tanto tempo depois, intacta, com o Pedro a mostrar como encontrara tudo.

7. O chocalhar dos carros de burros. As cadeiras de palha dos anos 70. As mesas de escritório sem um papel. Os lenços das raparigas. Os abraços dos rapazes. As bandeirinhas no tecto. Os cobertores felpudos. O tédio, o tédio. O brilho do mar, sempre ali, para quem nunca sai dali.

8. A última peça da exposição chama-se Entry Instructions for Gaza, um texto que aparentemente começa como um texto oficial. Fiquei muito tempo frente a ela, mais ainda do que em todas as outras peças anteriores. Porque Cut Short tem 27 fotografias em pequeno formato, com dois níveis de textos por baixo, então demora mais a ler do que a ver. De certa forma, contraria o princípio de uma exposição, e do que se tornou banal para a retina, imagem após imagem após imagem, tudo dado, pronto, fácil, rápido, de encher o olho. De certa forma,Cut Short é o contrário de cutting short. Nem dado, nem pronto, nem fácil nem rápido, nem de encher o olho.

9. Gaza é uma história tão velha, e tão quotidiana, que o primeiro problema de quem lá chega depois de tudo o que já foi reportado é essa exaustão. O Pedro mostra isso: a exaustão, e como o jornalismo pode contribuir para perpetuar a exaustão, fotografia incluída. Nada no trabalho dele é o resultado directo dos dias em que seguiu a agenda da agência Ramattan. As fotografias parecem estar sempre um passo atrás, à frente ou ao lado do que os outros queriam mostrar, ou esperam ver (como na sombra da câmara do fotógrafo nas costas do primeiro-ministro Ismail Haniyeh). Tudo o que ele mostra é a partir da própria cabeça, e o que o Cut Short diz é que não haveria outra possibilidade. Ou seja, o Pedro encontrou a sua forma de lidar com a impossibilidade de Gaza: uma imagem e dois níveis de texto, um com o que o autor escreveu então no seu caderno, outro com o que escreveu depois. Ao todo, três camadas em que cada uma revela a contingência da outra: a imagem por se reduzir ao enquadramento, o texto de então por estar próximo, o texto posterior por estar distante. Cabe a quem observa, lendo, seguir o seu próprio caminho a partir dessa confluência fértil. Em vez de um beco sem saída, ou de um desfecho, uma bifurcação. Então, sentei-me muitas vezes nesta esplanada, passei muitos dias neste hospital, estive com estes rapazes em concertos de rap, mas esta história de Gaza aparece-me como inédita e única, nos seus limites, cruzamentos e propagações.

10. Entre a galeria e o terraço, a cooperativa tem salas de residência, estúdios e laboratório, todo um projecto. Quando chegámos ao terraço, anoitecia sobre o castelo, a lua foi ficando mais nítida e Inês Mourão, a directora, preparou gins com alecrim e pimentas para toda a gente. Não bebo gin, mas precisava de beber qualquer coisa depois de Cut Short. De resto, não bebo gin mas já trafiquei gin para dentro de Gaza, nas barbas do Hamas.

11. Em 1972, palestinianos atacaram a aldeia olímpica em Munique, mataram dois atletas israelitas e tomaram mais nove como reféns, que também acabariam por morrer. Nixon condenou o acto terrorista enquanto os seus próprios soldados andavam a bombardear escolas no Vietname. Adelino Gomes, que então trabalhava no programa Página 1 da Rádio Renascença, leu em directo um comentário sobre isso, falando tanto de Munique como do Vietname. Tinha conseguido escapar à censura, atrasando o texto. No dia seguinte, estava impedido de trabalhar, teve de ir arranjar emprego na Alemanha. Grandes repórteres mudaram assim o mundo, um pouco, milimetricamente. Talvez isso ainda seja possível, torço para que sim. Cut Short é simplesmente outra coisa, que pode ser revelada por aí fora sem prazo nem pressa, e podia começar por descer a Lisboa, ou subir ao Porto. Tive, e ainda tenho, dificuldade para falar sobre ela, também por desde Junho, que foi o último remake da Operação Cast Lead, ter pensado tanto em voltar a Gaza, mas não para uma reportagem.

Foto
Pedro Letria

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