Leonardo Padura vê diálogo entre Cuba e os EUA com "espanto e esperança"

O romancista cubano Leonardo Padura, convidado do festival Correntes d’Escritas, onde lançou o seu último livro, Hereges, defendeu que “a liberdade é uma luta de travar todos os dias”.

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Da esquerda para a direita: Leonardo Padura, José Carlos Vasconcelos, Manuel Rui e Martinho da Vila

“O que vai acontecer nas relações entre Cuba e os Estados Unidos é algo que está no futuro, mas o início de conversações para o restabelecimento de relações diplomáticas traz uma grande esperança, e acho que as coisas só podem melhorar”, disse ao PÚBLICO o ficcionista cubano Leonardo Padura no final de uma sessão que esgotou a lotação (485 lugares) do remodelado Cine-Tetaro Garrett, na Póvoa de Varzim, a nova casa do festival Correntes d’Escritas.

Padura, um autor com dupla nacionalidade cubana e espanhola, mas que nunca quis deixar Havana, onde continua a viver, abriu a sua intervenção chamando justamente a atenção para a singularidade de “uma pequena cidade como a Póvoa de Varzim ter tantas pessoas interessadas em ouvir falar de literatura”, uma realidade que já conhecia das suas várias passagens anteriores pelo festival, mas que, pensando “em tantas importantes iniciativas culturais que quase não têm público”, nunca deixa de o “espantar e alegrar”.

O autor participava na quinta-feira à tarde, com o angolano Manuel Rui e o músico brasileiro Martinho da Vila, numa mesa que propunha à discussão a frase “A literatura é um poço de liberdades”. O director do Jornal de Letras, José Carlos Vasconcelos, moderou a sessão e, a pedido do presidente da Câmara da Póvoa, Aires Pereira, começou por ler um poema da sua autoria, no qual recorda com comoção o “velho Garrett” da sua juventude, quando fazia parte da “malta do galinheiro” que ia ver no grande ecrã “valentes cenas de chapada,/ Tremendos filmes de cobóis,/ De piratas, de capa e espada”.  

E se começou com um poema, a sessão terminou com um samba. Desta feita a pedido do moderador, que achou que Martinho da Vila, embora teoricamente presente enquanto escritor, não se importaria de vestir a sua mais conhecida pele de músico e cantar o samba Sonho de Um Sonho, inspirado no poema homónimo de Carlos Drummond de Andrade.

Desfalcada pelas ausências de dois dos participantes anunciados – o ensaísta Eduardo Lourenço e o poeta José Tolentino Mendonça –, a sessão teve aquele encanto um pouco desconexo de um festival que faz questão de não ser demasiado sisudo. Martinho da Vila falou essencialmente de Carnaval e samba, e Manuel Rui ilustrou com uma anedota, envolvendo alguns dos responsáveis do festival, a máxima de que a nossa liberdade acaba onde começa a dos outros. O angolano questionou ainda a verdade do mote colocado à discussão, lembrando os muitos escritores perseguidos e os que tiveram de se exilar para escrever em liberdade.

Já a intervenção de Padura foi interessante não apenas para os que se interessam pela sua obra, mas também por trazer um testemunho privilegiado das transformações que a sociedade cubana vem sofrendo ao longo dos últimos anos. Falando da sua última obra, Hereges, uma saga judaica que abarca vários lugares e tempos históricos, e que assinala o regresso da personagem do detective Mario Conde, o autor explicou que “a busca da liberdade, do livre arbítrio, é um tema central” do livro, mas que procurou evitar o "matiz político", porque este “conduz geralmente a questões mais colectivas”, e queria abordar “o tema da luta pela liberdade e do preço a pagar por ela de um ponto de vista mais pessoal, do indivíduo”.

Precisamente para evitar uma leitura demasiado política, que “seria inevitável”, diz, se o romance se passasse apenas no seu país, situou a acção em vários tempos e lugares. E para mostrar a Cuba de hoje, optou pelo olhar politicamente não muito marcado de um jovem que decide juntar-se a uma “tribo urbana” de Havana para “criar a sua própria pertença, e não pertencer à massa”.

Ou seja, para fugir à “homogeneidade que se pretende criar em países de sistema socialista”. Uma homogeneidade que "nivelou os cubanos na pobreza", e que Padura critica, mas reconhecendo que esta também resultou de "direitos”, da educação e saúde à prática do desporto. E se essa homogeneidade é hoje menor, nem sempre o é pelos melhores motivos. O escritor não parece sentir saudades do tempo em que, segundo contou, só tinha quatro camisas de produção nacional todas iguais – “às vezes conseguíamos arranjar uma camisa polaca” –, mas também não aprecia a proliferação actual de restaurantes privados com orquestra, onde “as mulheres são todas louras” e o direito de admissão é usado para filtrar a entrada de negros.

“Há uma nova classe privilegiada em Cuba, de gente branca", enquanto se amontoam em torno de Havana “bairros-de-lata comparáveis às favelas latino-americanas”, diz Padura. “A sociedade cubana está a reinventar-se a contra-corrente da política oficial”, resume.

E se a eventual normalização de relações com os EUA pode acentuar alguns destes fenómenos, o escritor acha que “o que vier só pode ser melhor”. E diz que a abertura de conversações surpreendeu por completo os cubanos, que “sempre esperaram que uma aproximação começasse por um desmantelamento progressivo e parcial do embargo, e não por cima”.

Este inesperado diálogo traz “uma grande esperança” aos cubanos, e não apenas por razões económicas, mas porque “viver durante décadas tão perto de uma grande potência, e nesta permanente hostilidade, cria uma tensão enorme, que afectou pessoalmente a vida de muitas famílias e indivíduos".

Numa breve conversa com o PÚBLICO após a sessão, Padura ilustrou o drama de muitos cubanos com o exemplo da sua própria mulher, cujo pai saiu de Cuba para os EUA em 1960, quando a filha não tinha sequer um ano. “Nunca o pôde visitar nos EUA, e o seu pai, durante muito tempo, também não podia ir a Cuba, e quando pôde já tinha outra família e não o fez”, conta. “E quando a minha mulher, finalmente, pôde ir aos EUA, ele já tinha morrido”.

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