Crónica de uma viagem insólita

Luigi Pirandello estreou mundialmente em Portugal uma peça sua e esteve em Lisboa para assistir à encenação de Amélia Rey Colaço. A viagem do dramaturgo italiano e o retrato de um país que se ia fechando à novidade num texto delicioso

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Quando Pirandello veio a Portugal, num vera~o a` beira da mais longa ditadura da Europa, para apresentar um dos seus inéditos...

Em 1931, Luigi Pirandello estreou uma peça de teatro em Portugal. Não foi mais uma reposição, mas sim a primeira vez que o mundo assistiu a Sogno (ma forse no), uma encenação de Amélia Rey Colaço no Teatro Nacional Almeida Garret onde esteve presente o escritor e dramaturgo italiano a quem a Academia Sueca viria a entregar o Nobel da Literatura em 1934. Então com 64 anos, Pirandello era um dos mais famosos e conceituados autores de teatro. Nos seus trabalhos desafiava e reinterpretava conceitos como o de verdade, real e ilusão, sempre com uma dose de ironia. Sobre a arte deste siciliano nascido em 1967, o português José Régio disse “assimilar as seduções” da futilidade e fantasia com a “seriedade do comediógrafo”. A ironia estava em cada palavra escolhida para ter esse efeito de desconcerto ao mesmo tempo que ia colocando interrogações essenciais e desenvolvia a ideia de que sonho era capaz de produzir realidade.

Em 1921, dez anos antes, Pirandello já tinha publicado aquela que seria celebrada como a sua peça mais famosa, Seis Personagens para um Autor, apresentada como capaz de congregar a essência da sua visão do mundo. Como se explica então que este homem escolhesse Portugal, naquele verão à beira de entrar na mais longa ditadura da Europa, para apresentar um dos seus inéditos? Em Com Um sonho na Bagagem, Maria José de Lencastre, professora de português na Universidade de Pisa, tradutora, com Antonio Tabucchi, de parte da obra de Fernando Pessoa para italiano, conta esse episódio que marcou a cena cultural portuguesa da época num pequeno volume que dá também o retrato de um país pelos olhos de quem o conheceu durante uma semana diferente, um contaste entre cosmopolitismo e o lado provinciano de que Lisboa era o melhor postal.

Pirandello (1967-1936) veio em resposta a um convite de António Ferro. O homem que pouco depois se tornava director do Secretariado de Propaganda Nacional do governo de Salazar era, em 1931, presidente da Associação Portuguesa da Crítica e organizou em Portugal o Quinto Congresso Internacional da Crítica que trouxe a Portugal 70 convidados: críticos de teatro, música, cinema, especialistas em direitos de autor para discutirem condições da profissão e defender a sua independência. O dramaturgo italiano era o convidado de honra do congresso, a par com o compositor francês Darius Milhaud (1892-1974). Recém-chegado da Alemanha, onde escolheu viver depois de se sentir politicamente traído pelo regime de Mussolini em Itália, Pirandello tinha cinco inéditos e Sonho, como seria mais tarde simplesmente conhecida a peça estreada em Portugal, assentava no imaginário português que Pessoa trabalhara em obras como O Marinheiro (1913) e de quem se iam conhecendo cada vez mais trabalhos. A simbologia do sonho, ou “a vida enquanto sonho”, parecia perfeita e tinha tudo para ser aplaudida por um público “culturalmente elitista”, como o descreve Maria José de Lencastre, que, embora em pequena quantidade, conhecia Pirandello, George Bernard Shaw (outro convidado que cancelou a vinda alegando cansaço com uma viagem recente) ou Arthur Schnitzler, o escritor alemão a quem Freud homenageou e que era uma inspiração para Pirandello.

Sobre estas escolhas de honra, de Pirandello e Milhaud, a autora escreve que serviam os objectivos de Ferro, “gestor cultural avant la lettre”, um modernista “fascinado pelos homens fortes e pelos regimes totalitários, especialmente o fascismo italiano”, alguém que amava a ordem, “um declarado nacionalista, e até um partidário da censura do regime nos momentos de maior sucesso político”, que queria ser escritor, experimentou mesmo vários géneros, mas à época era reconhecido sobretudo como jornalista. Com este congresso queria conseguir projecção pessoal, mas dar uma imagem de abertura ao regime que se estava a instaurar, ajudando à sua visibilidade no plano europeu.

Reunindo cartas, fotografias, artigos publicados na imprensa portuguesa e estrangeira, Maria José de Lencastre relata ao detalhe um episódio visto como insólito aos dias de hoje, que colocou alguns dos críticos mais influentes do mundo em itinerância pelo país a partir do Palace Hotel, no Estoril, durante dez dias e que, além de aplaudirem a peça de Pirandello em Lisboa, conheceram um promissor cineasta no Porto quando viram, também em estreia, o documentário Douro, Fauna Fluvial. Era “a estreia mais auspiciosa que tinha visto”, afirmava o crítico francês Villermoz nas palavras de Carlos Queirós, o jovem jornalista e poeta, sobrinho de Ofélia Queirós, a platónica amada de Pessoa. Ele esteve próximo de Pirandello que também aplaudiu o jovem realizador Manoel de Oliveira.

O livro de Maria José de Lencastre, primeiro publicado em italiano, em 2005, é rico em pormenores e centra-se na figura de Pirandello. No entanto, um dos aspectos mais curiosos deste texto é o que ele revela dos tais contrastes entre uma elite portuguesa instruída e uma população que vivia de forma miserável. Em cartas e em textos que publicaram nos países de onde vieram, os convidados sublinhavam essas nuances e o próprio Pirandello, em missivas enviadas à actriz Marta Abba, a sua musa: “Portugal está como que cortado da Europa; e, no entanto, é um país vivo e avançado, que se interessa muito pelas coisas da arte e sobretudo do teatro”. Parece que o país, o modo como foi recebido e que considerou surpreendente, mereceram mais a atenção do dramaturgo do que propriamente a peça, numa tradução que Maria José de Lencastre classifica como pobre, redutora face ao original, mas que Pirandello que não era capaz de entender. Essa tradução nunca seria publicada. Sogno (ma forse no) só teria tradução à altura em 1998, por Isabel Lopes e Fernando Mora Ramos: Sonho (ou talvez não), para uma produção do Teatro Nacional de S. João que a publicou com a Cotovia.

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