Contra as narrativas da história

Fernanda Fragateiro trabalha sobre a história da arquitectura.

Foto
Muro (2017), uma das obras mais recentes de Fernanda Fragateiro NUNO FOX/LUSA

Convém guardar no espírito os três nomes que Fernanda Fragateiro escolheu para o título desta sua mais recente exposição, arquivo, matéria e construção. É que, caso eles funcionassem como títulos e tivéssemos que atribuir cada um a apenas uma obra aqui presente, depressa perceberíamos que todas as peças relevam dos três nomes, sem excepção.

Quase que poderíamos pensar na actividade que precede esta exposição como a actividade de recolectar (no magnífico sentido visual que Agnès Varda deu a esta palavra). De facto, recolher indícios, restos, fragmentos precede obrigatoriamente a constituição de um arquivo, visto que este último já pressupõe uma ordem, uma lei, uma norma que o irá diferenciar de todos os outros arquivos que existem. Neste caso específico (mas o trabalho desta artista já percorreu outros caminhos da criação moderna, e sem dúvida voltará a eles noutras ocasiões) Fernanda Fragateiro apresenta-se como a artista que recolhe as memórias da arquitectura, os vestígios materiais de uma cidade em contínua transformação, para em seguida os reconfigurar numa nova forma significante, num novo objecto, porque afinal é artista e ao artista, como ao historiador, cabe também o trabalho de, no presente, dar sentido ao passado.

Esses vestígios são de natureza diversa. Podem passar, por exemplo, pelo destapar dos tapumes que transformam a complexidade do desenho da Central Tejo num white cube à maneira modernista, ou seja, num receptáculo supostamente neutro de exposições de arte contemporânea. Podem ser, noutras direcções, pedaços de tijolo descartados depois de obras neste mesmo edifício, apresentados numa caixa que parece fugir às leis da gravidade e flutuar acima do chão. Ou, como no caso da peça que nos acolhe, bocados de alvenaria que a artista foi recolhendo a partir de uma das muitas obras actuais de remodelação de um prédio pombalino perto do seu atelier. Ou, o que configura outro tipo de restos, de recolhas, um “laboratório de materiais” onde se dispõem alguns dos elementos de apoio à criação da artista, aqui cristalizados numa obra que recorda o conceito que presidia à criação dos antigos “cabinets de curiosités”. Todos estes tipos de objectos, e outros, suportam uma reflexão sobre a matéria-prima da arquitectura, por um lado, e sobre a própria construção do objecto escultórico, cumprindo assim a promessa do título.

Até aqui, a exposição não justificaria a excepcionalidade que é, de facto, a sua característica. É que Fernanda Fragateiro possui um outro tipo de arquivos também ligados à arquitectura que podem e estão na base de dois tipos de análise. Trata-se das revistas internacionais desta disciplina artística, o grande suporte para a divulgação internacional de realizações durante toda a época modernista, graças às possibilidades de reprodução pela imagem fotografada ou desenhada de edifícios frequentemente de difícil visita. Contudo, as revistas internacionais, como todos os meios de divulgação de massa da arte moderna, mantiveram a narrativa dominante, patriarcal e autoritária, que é a narrativa que ainda hoje domina na história da arte. Fernanda Fragateiro, que mantém uma relação com o livro e a palavra escrita desde que começou a trabalhar, não podia deixar em branco esta constatação. Um núcleo importante e excelente de obras que encontramos nesta exposição denuncia essa narrativa, usando as revistas como matéria da própria escultura.

Não se trata de quaisquer revistas, mas de exemplares que, de algum modo, estão ligados ao processo de invisibilidade da actividade das mulheres arquitectas. Os exemplos são muitos, mas através do seu manuseamento as revistas podem transformar-se em viga, em pilar, em imagem fixada, mas nunca visível, dentro de um invólucro de acrílico. É de notar que a artista explica, em textos colocados junto às obras, o seu processo de conceptualização das mesmas, numa atitude que também não é comum no meio artístico. De entre todas, Architecture: a place for women? , adquirida pelo próprio MAAT, é decerto uma das melhores, senão a melhor.

Um outro modo notável de encarar esta questão é aproximar o objecto criado do objecto minimal, em particular dos módulos dispostos em séries verticais (e, mais tarde, horizontais) de Donald Judd, provavelmente o mais famoso dos artistas que expuseram juntos sob esta bandeira. O minimalismo, um grupo composto apenas por homens, que criou obras que foram com frequência acusadas de machistas, sempre se defendeu alegando neutralidade, e que por isso, se a sociedade em que prosperava era machista, assim haviam de ser as obras de arte por ela criadas. Uma das apostas dos artistas minimais era justamente a mesma neutralidade advogada para o espaço expositivo, o tal white cube que Fernanda Fragateiro destrói no início da exposição, duplicando-o com uma peça disposta no chão da sala. E, se hoje a investigação em história da arte tem exposto cada vez com maior força a artificialidade dessas narrativas que se davam por verdadeiras, também é aqui, nas próprias realizações dos artistas, que essa denúncia se faz.

Sugerir correcção
Comentar