Comprar livros do MEC e ajudar ao estudo das aves

O alfarrabista Campos Trindade fez no sábado uma venda de três mil livros da biblioteca de Miguel Esteves Cardoso. Confirma-se que são muitos e variados os temas que o seduzem.

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Nuno Ferreira Santos
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Alguns livros tinham anotações escritas à mão por Esteves Cardoso Nuno Ferreira Santos
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Os primeiros livros a desaparecer nas mãos dos novos donos foram, segundo Bernardo, “muitos de ensaio, alguns de poesia, muita literatura inglesa” Nuno Ferreira Santos
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Entre os três mil livros que pertenceram ao autor, jornalista e cronista Miguel Esteves Cardoso (MEC) e que a Livraria Campos Trindade, de Lisboa, colocou à venda durante a tarde e a noite de sábado, há pelo menos um que representa um desafio para qualquer vendedor. É um livro grosso, com o título Modern Refrigeration and Air Conditioning.

O alfarrabista Bernardo Trindade ria-se. “Apostei com o Miguel que conseguia vender este livro, nem que demorasse 100 anos”. Mas se, às seis da tarde de sábado, o livro sobre sistemas de ar condicionado continuava teimosamente numa prateleira, muitos dos outros voavam dos seus lugares e saíam da loja nas mãos dos compradores.

Bernardo estava cansado mas satisfeito. “Dormi três horas”, contava. “Estive desde as três da manhã de ontem a marcar livros”. Mostrou, no telemóvel, fotografias do momento em que se abriram as portas, às três da tarde, e da fila de pessoas que já esperavam no exterior. Nessa primeira hora a livraria esteve completamente cheia. “Quando abri entraram logo umas 40 pessoas. Algumas levaram lotes de 100 livros, foi uma loucura.”

Vieram os clientes habituais, que, disse Bernardo, querem sempre chegar em primeiro lugar para poder escolher enquanto ainda está tudo disponível. E vieram pessoas que geralmente não frequentam o alfarrabista mas que são fãs de Miguel Esteves Cardoso “e gostam de ter um livro que lhe pertenceu”.

Esta é apenas uma parte da biblioteca de MEC – os livros que, por problemas de espaço em casa, ele “achou por bem irem para outras mãos”, explicou Bernardo. “Tenho agora dois aniversários e isto é simbólico porque são ambas pessoas que admiram imenso o Miguel”, declarava um dos clientes a um amigo, enquanto juntava vários volumes para levar.

Os preços eram irresistíveis – muitos dos livros estavam marcados a um euro ou a dois e meio. Bernardo puxou pela cabeça para se lembrar qual o mais caro e concluiu que era uma primeira edição de In Patagonia de Bruce Chatwin, que custava perto de 50 euros e que já fora vendida.  

Os livros – e também muitos CD’s de música – espalhavam-se por cima de mesas e ocupavam todas as estantes da loja. À excepção dos de gastronomia, Bernardo optou por não lhes dar uma ordem particular precisamente para deixar às pessoas a liberdade de procurar e fazer descobertas. “Há uma frase que usamos muito: as pessoas vêm aqui encontrar aquilo de que não estão à procura.”

E, de facto, era possível encontrar The Official Harvard Student Agencies Bartender Course ao lado de Just My Type – a book about fonts, ou de Overcoming Shyness and Social Phobia – a step-by-step guide. Havia guias de Viagem como um Lonely Planet da Andaluzia e a Ilíada de Homero em inglês, a poesia de Álvaro de Campos e um “family health book” sobre a Mayo Clinic, uma History of Greek Philosophy (e também um dicionário Oxford de bolso de grego) e The A to Z Encyclopedia of Serial Killers, ou Ethical Cristicism – Reading after Levinas e, ao lado, The End of Overeating.

Ou, ainda, um curioso Opinions on Military Comand by President Moammar Kazzafi (sic) numa edição impressa em Beirute, que foi comprado em Londres em 1976 e no qual alguém escreveu à mão na página do título no interior: “A funny book” (um livro engraçado).

Quem tivesse dúvidas sobre a vastidão de interesses do actual cronista do PÚBLICO (onde MEC tem uma crónica diária e outra semanal na Fugas, sobre comida mas não só) ficava esclarecido perante a variedade de temas que se encontrava na Campos Trindade. Os primeiros livros a desaparecer nas mãos dos novos donos foram, segundo Bernardo, “muitos de ensaio, alguns de poesia, muita literatura inglesa”.

Alguns livros, não muitos, estavam abertos na página do título no interior porque tinham anotações escritas à mão por Esteves Cardoso. O The Portuguese de Marion Kaplan tinha uma única frase: “Que maravilhoso país é Portugal”. No livro do nutricionista norte-americano Gayelord Hauser’s Treasury of Secrets, MEC escreveu em inglês: “Mummy lent me this book in 1998” (a mãe emprestou-me este livro em 1998). E de seguida explicava que, apesar de não ser a primeira vez que o lia, no período em que sofrera de problemas neuro-gastro-enterológicos o livro tinha-o ajudado a recordar “all the good advice mummy gave me when I was a child” (todos os bons conselhos que a mãe me deu quando eu era criança).

Noutro livro em inglês, Pecked to Death by Ducks, as notas disparavam em várias direcções: uma delas dizia “eu sou um bom catavento, sopro na direcção do vento”, enquanto mais a baixo se lia “Benfica-Boavista. A sorte de Deus (golo de Futre). Copyright da Bennetton. Ar arrogante. Só SLB consegue resultados impressionantes. Acima das coisas. Só talento. Talento puro, como cocaína, sem treino.”

Todos os que no sábado compraram livros no alfarrabista da Rua do Alecrim contribuiram também para ajudar uma organização: uma percentagem das vendas reverteu para a SPEA Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves – uma escolha do próprio MEC.

Se outras não houvesse, esta seria já uma boa razão para comprar o clássico sobre refrigeração e ar condicionado que aguardava pacientemente numa das prateleiras quem lhe reconhecesse o valor. 

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