Francisco Tropa: manter intacta a magia que rodeia toda a obra de arte

Um enigma a exposição de Francisco Tropa? Uma forma irónica e complexa de manter intacta a magia que rodeia toda a obra de arte.

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Esta exposição acontece no cruzamento entre seres aparentemente estranhos, distantes e até contrários
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As obras pertencem a duas famílias. A primeira – e mais perturbadora — é composta por anúncios de venda de automóveis que Tropa serigrafou. A estas imagens contrapõem-se obras do artista que reconhecemos de séries importantes

Quem acompanha o trabalho de Francisco Tropa está habituado a exposições que são verdadeiros enigmas. Não são simples quebra-cabeças, mas verdadeiros enigmas no sentido de não serem paródias e sim construções poéticas formal e materialmente complexas, destinadas a estabelecer um entendimento do que é uma obra de arte e o que é o gesto artístico. Importa perceber que apesar da dificuldade em decifrar esta exposição — dificuldade expressa na pergunta: “mas o que é que o artista está aqui a fazer?” —, o que está escondido está também à vista e, portanto, acessível a todos. Um mecanismo duplo de ocultação e desocultação que não resulta da simples vontade em perturbar a experiência do espectador, mas que é ele próprio o eixo central da exposição: é este jogo entre as “coisas” presentes que reconhecemos clara e intuitivamente como sendo obras de arte (nomeadamente obras de Francisco Tropa) e as outras que escapam às nossas expectativas, concepções e protocolos artísticos, que constitui o motor de construção das camadas poéticas e estéticas que o artista nos propõe.

As obras pertencem a duas famílias ou, se se quiser, a duas colecções distintas. A primeira – e imediatamente mais perturbadora — é composta por anúncios de venda de automóveis que Tropa serigrafou e transformou em obras expostas na galeria. Estes anúncios são serigrafias exactas daqueles papéis promocionais que amiúde encontramos nos pára-brisas dos carros e a maneira como o artista os usa não convoca nenhum tipo de lógicas de ready-made, nem tão pouco é uma aproximação ao modo como os artistas pop trataram as imagens publicitárias. A apresentação que deles é feita é, aparentemente, sem desvio, sem intervenções, parecendo que a única acção feita é a ampliação e a sua fixação num papel de arte.

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Mas a estas imagens contrapõem-se obras do artista que reconhecemos de séries importantes na sua obra, como Assembleia de Euclides, e obras cuja expressão permite facilmente identificar como pertencentes ao corpo da obra de Tropa. É uma selecção eficaz na construção daquilo a que, seguindo a sugestão da curadora Filipa Oliveira, podemos considerar a mitologia individual deste artista no interior da qual as suas obras se constroem e energizam. Não se pode dizer ser um contexto ou uma moldura, mas uma espécie de núcleo energético que irradia e energiza todas as suas obras e as faz pertencer a uma mesma família.

Entre estas duas ordens de obras estabelece-se uma lógica de intromissão e de interrupção fazendo com que esta exposição aconteça no cruzamento entre seres aparentemente estranhos, distantes e até contrários. Daqui não resulta a produção de um discurso acerca da actual produção torrencial de imagens que nos torna imunes e, muitas vezes, impreparados para as imagens artísticas. Nem tão pouco podemos localizar o modo irónico como o artista preenche parte significativa das paredes da galeria com frases como Compramos automóveis, Compro todo o tipo de carros,  numa lógica de crítica às instituições e mercados da arte a que nos habituamos a chamar crítica institucional. Há um vazio a partir do qual se dá a articulação entre as duas famílias e é sobre este vazio que a exposição se desenvolve e o espectador constrói a sua experiência.

A tentação em nos transformamos em exegetas estéticos e encontrar nos textos dos anúncios pistas paras as intenções secretas do artista é grande, até porque é possível identificar elementos comuns: só se anuncia a compra, os únicos objectos das potenciais transações são automóveis e motos usados e para que haja confiança no negócio pagam em dinheiro e na hora. A tentação de usar estas pistas como metáforas do mercado da arte é grande e, pensando bem, a sugestão é pertinente e com sentido. Em alternativa a esta acção detectivesca, podem ignorar-se os anúncios e olhar só para arte sendo-nos indiferente as consequências do encontro entre as duas cabeças da exposição.

Mas o problema deste artista nesta exposição não é esse — creio. Trata-se de uma forma irónica e complexa de manter intacta a magia — que é um segredo — que rodeia toda a obra de arte. Não se trata de um exoterismo desnecessário, mas da necessária inscrição do pensar e agir artísticos numa outra ordem de acontecimentos. E da afirmação da exposição — lugar importante na construção de sentido das obras de arte — como um espaço fundamentalmente de liberdade onde cada um escolhe o lugar a partir do qual vê, imagina e pensa o mundo que o rodeia.

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