Como Vergílio Ferreira preparou o futuro

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Uma novela e um romance inéditos, que Vergílio Ferreira optou por não publicar em vida, saíram na Quetzal, que está a reeditar a obra completa. A equipa de investigadores que está a trabalhar o seu espólio conta ao Ípsilon as razões da decisão

Eça de Queirós achava que se deviam publicar de um homem célebre até as "contas do alfaiate". Quem conta isto é o escritor Vergílio Ferreira num dos volumes do seu diário "Conta?Corrente", a propósito de uma discussão que teve com a sua mulher, Regina Kasprzykowski, sobre se é lícito ou não publicar?se o que um autor rejeitou. Para Vergílio Ferreira, "um autor não dá garantias quase nenhumas (mormente quando grande autor) sobre a valia do que realiza. E não há obra medíocre alguma de um autor que lhe destrua a obra superior."

O escritor foi mais longe: "Saber como se errou, progrediu, hesitou - tudo são modos de ampliar o conhecimento de um autor. De qualquer modo, se um artista não quer que se lhe conheça a obra, destrua a ele". Vergílio Ferreira não destruiu a sua e deixou o acervo tão organizado que só poderia estar a pensar no futuro.

Dois inéditos do autor chegam agora às livrarias, editados pela Quetzal: uma novela ("A Curva de Uma Vida", 1938) e um romance ("Promessa", de 1947). Passados tantos anos depois da publicação de "Cartas a Sandra", o último romance do Prémio Camões 1992, já saíram do seu espólio "Escrever" (livro em que estava a trabalhar quando morreu), um "Diário Inédito" e estas duas obras. "Promessa", que teve como primeiro título "Sequência", é o único romance inédito completo que existe no espólio e a decisão de o trazer a público não foi fácil de tomar para a equipa de investigadores e professores que está a estudar, catalogar e anotar a sua obra.

Em 1997, a família de Vergílio Ferreira doou o espólio do escritor à Biblioteca Nacional e, por sua sugestão, foi criada uma equipa para o estudar dirigida pelo académico Helder Godinho, seu aluno e amigo, que fez a tese sobre a sua obra.

A investigadora Ana Isabel Turíbio, que faz parte do grupo de estudo e inventariou o espólio, diz que este estava organizado a pensar nos estudiosos futuros. "O espólio vinha muito organizado, com as abreviaturas desenvolvidas, com alguns comentários para ele próprio ('anotei outra cópia e agora não sei onde está'; 'críticos de lábia fácil não imaginam o esforço...'). Vê-se que é um espólio trabalhado, deixado para a posteridade. Tive oportunidade na Biblioteca Nacional de mexer em papéis de vários autores e nem todos têm essa consciência de os deixar arrumadinhos", conta. Através do estudo do espólio a investigadora percebeu que Vergílio Ferreira ia revisitando os seus papéis. "Mexia e, às vezes, até datava essas visitas. Às vezes chegamos lá pelos instrumentos utilizados, pelas canetas, pelas tintas."

"Ele estava a preparar o espólio para o futuro. Tinha essa noção de que era necessário conhecer tudo o que um escritor fez para substanciar a apreciação que fazemos dele", acrescenta Helder Godinho.

As hesitações do autor

Vergílio Ferreira morreu aos 80 anos, a 1 de Março de 1996. Nas últimas décadas, muitos dos seus títulos foram desaparecendo das livrarias. "A publicação dos inéditos veio agitar as águas e ter o efeito contrário a esse adormecimento", considera o investigador. "Houve uma má gestão da edição e do catálogo. Há muitos livros que se deixaram esgotar", lamenta.

Francisco José Viegas, editor da Quetzal, está a reeditar a obra completa e a publicar os inéditos encontrados no espólio. A reedição de "Na Tua Face" sai este mês, as reedições "Cartas a Sandra" e "Carta ao Futuro" estão previstas para Setembro. No próximo ano deverão publicar a edição crítica de "O Caminho Fica Longe" (por Ana Isabel Turíbio). Em preparação está a edição genética de "Onde Tudo Foi Morrendo", bem como uma edição de "Sobre o humorismo de Eça de Queirós" - no espólio existe uma segunda edição completamente preparada que deveria ter saído em 1945, mas que Vergílio Ferreira não chegou a publicar. Em negociação está um contrato com uma agente literária internacional que ficará com os direitos da obra para o mundo inteiro.

Esta equipa que estuda o espólio, e que inclui ainda Fernanda Irene Fonseca e Cátia Barroso, assumiu a responsabilidade de trazer a público o romance e a novela que o autor não publicou em vida por várias razões. Uma delas é o facto de Vergílio Ferreira ter emprestado há 30 anos o original dactiloscrito do romance "Promessa" (1947) a Helder Godinho quando ele estava fazer a sua tese. "Portanto, ele não rejeitava o livro", afirma o académico. "Eu estava a fazer a tese de doutoramento e o Vergílio Ferreira disse-me que havia um romance que não tinha publicado mas que achava que eu devia ler. Li-o e percebi por que não o publicou."

Os investigadores têm consciência do "carácter datado" deste romance escrito antes de "Mudança" (1949). "'Promessa' é um romance em que falta o equilíbrio do sentimento, a emoção poética na escrita que 'Mudança' já tem. Mas é importante porque é o primeiro romance de ideias, escrito na época em que o autor acabara de ler Hegel e Sartre. Escreveu a seguir 'Mudança', que na obra publicada passou a ser o primeiro romance de ideias", explica o investigador.

"Promessa" mostra também que a ruptura de Vergílio Ferreira com a temática neo?realista foi anterior a "Mudança".

"A leitura de 'Promessa' pode ser difícil para o leitor comum. É um livro cheio de ideias secamente expostas  sem aquela dimensão poética com que ele vai depois adoçar as ideias", afirma Helder Godinho. "Há muitos diálogos, mais do que ele fará posteriormente. 'Promessa' é o momento de mudança de um tipo de romance neo-realista para um romance de ideias. Vê-se que ele está à procura do estilo, no sentido forte do termo."

Em 1956, Vergílio Ferreira escreveu na página de rosto do dactiloscrito de "Promessa": "Releio trechos. O livro não é precisamente uma tolice. Está quase certo, embora à sua maneira. Com pequenas emendas..." Anos depois, em 1980, contam os investigadores no prefácio do livro agora publicado, o escritor voltou a reler o romance e acrescentou um outro comentário: "Livro medíocre e precipitado. Talvez re?escrito possa aguentar?se. Ou talvez não muito 'medíocre', mas apenas ultrapassado. Se o tivesse publicado antes de 'Mudança', estaria certo, talvez."

Ao longo do tempo, Vergílio Ferreira vai mudando de opinião em relação aos seus livros. O escritor contou a Helder Godinho que quando publicou "Alegria Breve", andou preocupado uns dias a pensar que se calhar o livro não prestava. "Este livro, que é talvez o maior de Vergílio Ferreira, foi publicado em francês na colecção Gallimard e penso que foi até Jean Bloch-Michel que disse que ao ler-se aquele livro via-se que um dos grandes escritores europeus vivia em Lisboa. As hesitações dele, opinativas, não eram significativas", afirma Godinho.

O primeiro escrito

Quando Ana Isabel Turíbio pegou no espólio de Vergílio Ferreira para o inventariar teve de dar várias voltas para organizar os papéis. Foi nessa altura que encontrou o manuscrito da novela "A Curva de Uma Vida", que é o primeiro escrito de Vergílio Ferreira, e foi agora publicada.

"É difícil pegar nos papéis porque temos a presença do autor, física, ainda muito próxima. À medida que o tempo vai passando conseguimos criar distância e espaço para reflectir, e já sem emoção trabalhar com os critérios que a Biblioteca Nacional utiliza", explica a investigadora, que fez a edição genética e crítica da novela com Cátia Barroso, bolseira no Centro de Estudos do Imaginário Literário, e que se tornou "uma ilustre vergiliana aos 22 anos".

As especialistas consideram que em "A Curva de Uma Vida" se encontra muito do que irá ser a maneira como Vergílio escreverá no futuro. Estão lá temas como a morte, a partida, a relação com os pais. "Vergílio Ferreira integrou na novela outros tipos de registo: o diarístico, o epistolar e o lírico, que serão géneros que o vão acompanhando depois em outras obras", explica Ana Isabel para quem a publicação desta novela se justifica em função da obra que veio depois. "Isto era publicável quando ele tinha 22 anos, hoje é publicável como documento histórico", acrescenta Helder Godinho. "E como prova de coerência, já aqui se encontra muito daquilo que foi a sua obra", nota Ana Isabel.

No espólio encontra-se correspondência que ainda não foi publicada. "Nem será", dizem os investigadores. É muito privada, faz referências pessoais e envolve pessoas vivas. Grande parte da correspondência é trocada com Eduardo Lourenço (que Vergílio considerava ser o seu melhor amigo), Jorge de Sena, Mário Dionísio, André Malraux, com brasileiros que fizeram teses sobre a sua obra, com o pintor Júlio Resende, etc.

No espólio também estão as fotografias que Vergílio Ferreira usava na construção dos seus romances.

"É muito interessante visitar o 'dossier' genético de 'Para Sempre' e de outros romances. Vê-se que ele tirava fotografias às ruas para depois as descrever", conta Helder Godinho. Vergílio fotografou "a zona do Saldanha, da Casal Ribeiro [Lisboa], e para a descrever com rigor" na obra "Em Nome da Terra". "Em 'Rápida, a Sombra' usou uma fotografia de um calendário com uma rapariga com uma camisola transparente para descrever a situação em que a personagem sai das águas como uma Vénus."

Depois de reunir essa documentação, conta Ana Isabel Turíbio, Vergílio perguntava "Para quê, se tudo o mais está na imaginação?". Mas logo a seguir explicava que era para não cometer "gaffes".

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