Como ver os nossos Mirós

O espaço mais flexível do Palácio da Ajuda permite mostrar em Lisboa a Colecção Miró na íntegra. O Museu de Serralves está já a pensar na próxima exposição do artista e a estudar como manter esta nova colecção portuguesa viva e aberta ao diálogo.

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A sala que junta meia dúzia de trabalhos sobre masonite, um dos muitos espaços que compõem os 700 metros quadrados por onde se espalha esta nova versão de Joan Miró: Materialidade e Metamorfose Daniel Rocha

É quase inevitável que quem tenha visto a exposição de Joan Miró na Casa de Serralves, no Porto, vá à procura das obras “novas”, chamemos-lhes assim, ao percorrer a Galeria D. Luís do Palácio da Ajuda, uma vez que em Lisboa é mostrada, pela primeira vez, a Colecção Miró portuguesa na totalidade — 85 obras, entre pinturas, desenhos, esculturas, tapeçarias (os famosos sobreteixins) ou colagens. São mais nove.

Après les constellations, duas pinturas feitas em 1976 sobre masonite, um tipo de aglomerado de madeira em que o pintor explorou a superfície rugosa, estão entre as novidades mais interessantes. Estreitas e compridas, com um formato pouco habitual mas que associamos a Miró (14cmx79cm e 14cmx54cm), paramos obrigatoriamente em frente a elas, não só por causa deste jogo das novidades, mas porque o curador desta exposição — que é a mesma nos dois espaços apesar dos pequenos ajustamentos — está visivelmente entusiasmado com as obras sobre masonite, um material industrial surgido na primeira metade do século XX. Robert Lubar prepara uma exposição para daqui a quatro anos na Fundação Miró de Barcelona, de que é administrador, dedicada às obras realizadas sobre este suporte inusitado explorado pelo artista catalão (1893-1983).

O curador já tinha parado minutos antes numa sala a que chamou “a capela” — e que junta meia dúzia de trabalhos sobre masonite —, um dos muitos espaços que compõem os 700 metros quadrados por onde se espalha esta nova versão de Joan Miró: Materialidade e Metamorfose. O interesse mais demorado não foi só para elogiar esta luz mais confessional do espaço de Lisboa, presente em muitas salas da Galeria D. Luís, mas para o curador sublinhar o potencial de colaborações que a Colecção Miró traz a Serralves.

Tal como a exposição portuguesa, a nova mostra prevista para depois de 2020 também vai explorar os materiais e os suportes e a sua relação com as ideias, mas em Barcelona haverá um enfoque nas 27 obras que o artista fez sobre masonite e o curador espera conseguir juntar todas as realizadas pelo pintor catalão, incluindo as oito de Portugal. 

“Estas pinturas são uma metáfora para um colapso social. Os monstros entram na sua arte”, explica o comissário sobre esta série de pinturas abstractas que começam a ser feitas em 1935 como reacção à violência do fascismo, durante uma visita com os jornalistas à exposição realizada no dia da inauguração. Desafiam o lado poético que conhecemos de outros trabalhos de Miró e coincidem com o início da Guerra Civil Espanhola. “Miró lança o horror contra a sedução”, lê-se num texto assinado pelo curador incluído no catálogo editado por Serralves, nestes quadros “que constituem as chamadas ‘pinturas selvagens’".

As outras sete obras que não foram expostas no Porto também são quase todas dos anos 70 e a maioria executada sobre papel — destaque também para uma guache e tinta-da-china sobre papel em que a linha negra do contorno parece infiltrada pela mancha que ganha contornos de rizoma. Há duas obras de 1937, uma delas feita sobre cartão, e outra dos anos 60.

Novos parceiros

A colaboração com a Fundação Miró “é uma coisa naturalíssima”, diz ao PÚBLICO Ana Pinho, presidente da Fundação de Serralves, quando lhe perguntamos se o acordo com Barcelona já está fechado, lembrando a exposição Os Mirós de Miró feita em 1990 no museu do Porto em estreita colaboração com Barcelona. “Não está ainda acordado, mas é possível. Há todo o interesse em que partes da colecção sejam mostradas noutros sítios.”

Serralves quer voltar a mostrar os Mirós no Porto já em 2018, mas ainda não há uma data definida para a nova exposição, esclarece Ana Pinho. O arquitecto Álvaro Siza, autor do layout da primeira exposição que teve lugar na Casa de Serralves de Outubro de 2016 a Junho deste ano, e que atraiu 240 mil visitantes (um quarto de milhão, sublinha o curador), está a preparar a moradia modernista situada no parque, que é património classificado, para poder receber os Mirós de uma forma permanente. Não se espere, diz Ana Pinho, uma exposição com as mesmíssimas obras: “Queremos mostrar coisas diferentes, em conjunto com outras instituições, se não a colecção morre. Queremos entrar em diálogo com outros artistas.”

As 85 obras de arte – um conjunto construído por Pierre Matisse, filho do pintor e galerista de Miró em Nova Iorque – estiveram escondidas nos cofres do BPN até o Governo socialista ter decidido este ano impedir a sua venda num leilão em Londres, que prometia 35 milhões de euros para abater parte dos créditos do banco. Foram entregues à Câmara Municipal do Porto para serem mostradas na cidade, que por sua vez decidiu pôr a sua exploração nas mãos de Serralves.

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A directora do Museu de Serralves, Suzanne Cotter, à esquerda, e o comissário da exposição, Robert Lubar Daniel Rocha

A Suzanne Cotter, directora do Museu de Serralves, perguntamos se esta segunda oportunidade para ver a exposição, numa galeria flexível que permite adaptar os espaços à narrativa expositiva, lhe pode ensinar algo em relação a modelos futuros de exibição, e se a Casa de Serralves, com os seus constrangimentos patrimoniais, é o melhor sítio para mostrar a colecção.

Segundo os números esta semana fornecidos por Serralves e pelo Palácio da Ajuda, as duas exposições ocupam mais ou menos a mesma área: na Casa de Serralves, Joan Miró: Materialidade e Metamorfose estendeu-se por 680 metros quadrados, enquanto na Galeria D. Luís ocupa 700 metros quadrados.

“Por agora, a ideia é a adaptação da Casa de Serralves”, explica ao Ípsilon a directora. “É importante também ter a consciência de que esta colecção precisa de muita atenção, há todo um estudo a fazer sobre as necessidades de conservação das tapeçarias, dos desenhos, das molduras, das obras sobre papel. Isto tem de ser pensado ao mesmo tempo que fazemos a programação de apresentação da colecção.”

Este segundo momento é também a altura para o museu, em paralelo, iniciar conversas com eventuais parceiros detentores de acervos significativos de Miró. “Estão já a começar. Esta é uma boa colecção, como diz o curador, mas todos concordamos que, com o tempo, vai precisar de dinamização. É necessário compreendê-la num contexto mais alargado.”

A obra de Miró, que morreu com 90 anos e é um dos artistas mais importantes do século XX, cobre um impressionante arco temporal, como escreve Cotter no catálogo. E se a colecção portuguesa se alarga por seis décadas de produção artística, Suzanne Cotter ambiciona enquadrá-la, “quer no contexto da obra total de Miró, que é enorme, quer em diálogo com outros movimentos artísticos ou com outros artistas”.

Muito para descobrir

Logo na segunda sala do Palácio da Ajuda, a exposição coloca a obra Sem Título (Dançarina), a mais antiga da colecção, datada de 1924. Aqui o artista, como nos explica o curador, reduz todos os objectos a signos: “Há uma roda que parece uma roda, mas também é o sexo da bailarina. Há uma ambiguidade entre signos, mas também entre conceitos. Os signos, não as obras, são abstractos.”

A linha de Miró, um dos seus elementos mais expressivos, já está aqui bem visível, lembrando o curador no catálogo que Miró queria “partir” a guitarra cubista, “modo de expressar o seu esforço para escapar à tradição renascentista do ilusionismo [na representação da realidade], que atingiu o seu apogeu com a pintura cubista”. “Esta parede é genial”, diz o curador aos jornalistas, apontando para onde se vêem três desenhos de 1966, feitos em tinta-da-china sobre papel japonês. Só há linhas, alguns pontos e um ou outro círculo, um deles incompleto. A pintura como mínimo, “uma linguagem aberta”, onde já nem os signos são concretos mas estão em potência. A pintura liberta-se da sua função significante, conseguindo Miró “uma poesia sem paralelo na exploração do vazio”, escreve Robert Lubar no catálogo a propósito dos três desenhos.

Para o curador, não vale a pena perguntar o óbvio: “A mesma exposição em dois espaços diferentes muda sempre. E às vezes, para manter o sentido num determinado espaço, temos de fazer sacrifícios.” Quem viu a exposição do Porto vai aqui descobrir outras coisas, perspectivas diferentes: “É outra exposição aqui… Se em Lisboa pude incorporar as duas obras sobre masonite, em Serralves a sala dos desenhos dos anos 50 estava, em minha opinião, muito melhor. É sempre uma questão de ajustes. Para mim, isso é o bonito de comissariar uma exposição, porque, de cada vez, descubro coisas novas na relação que estabeleço com o espaço.”

Suzanne Cotter e Ana Pinho dizem que há ainda muito para descobrir em relação às possibilidades da Casa de Serralves para mostrar os Mirós. Não está em causa, para já, procurar outro espaço, ou fazer outro edifício de raiz no parque, tendo em conta a pressão (palavras nossas) que esta opção coloca sobre um edifício tão particular como a moradia modernista mandada construir pelo conde de Vizela no início do século XX, um exemplar raro do espaço doméstico de luxo daquela época.

“Estamos a fazer um trabalho com o arquitecto Siza para ver como devemos abordar o espaço, conservar as características da casa e a sua relação com os jardins. Temos muitas salas nesta casa. Para a exposição anterior, tomámos a decisão de utilizar de não utilizar a casa toda. Fechámos salas”, afirma ao Ípsilon Suzanne Cotter, à margem da apresentação da exposição em Lisboa.

Se a exposição de Miró na Casa de Serralves ocupou 680 metros quadrados, a área total disponível para exposições é de 870 metros quadrados. Sobram, assim, mais 200 metros quadrados, espalhados pelo quarto da condessa, o escritório do conde e a biblioteca, se não incluirmos espaços como casas de banho, adega ou sala das caldeiras.

“Temos a possibilidade, estudando aquilo em que não se pode tocar a nível patrimonial, de usar mais salas para uma apresentação permanente”, continua Cotter. “Com toda a área da casa, há ainda a possibilidade de fazer exposições diferentes, com uma escala maior, e também de fazer intervenções contemporâneas, seja em diálogo com uma obra de Miró, várias obras de Miró, ou ainda com o seu pensamento. Ou fazer, somente, intervenções contemporâneas em diálogo com a casa. A ideia é manter todas estas possibilidades e com o tempo vamos ver o resto.”

A directora do museu sublinha que Serralves está a começar o projecto da Casa do Cinema Manoel de Oliveira, também com desenho de Siza, para instalar na antiga garagem da residência do conde de Vizela o espólio do realizador português desaparecido em 2015. Suzanne Cotter reconhece que Serralves está a testar, cada vez mais, “a mentalidade de campus no seu terreno”, como se viu com a construção de cinco pavilhões efémeros, encomendados a jovens arquitectos portugueses, para mostrar obras da 32.ª Bienal de São Paulo, que estão instalados no parque até Outubro. “Estamos aqui em 2017 e em 2020 quem sabe? Se pensarmos na Colecção Menil, em Houston, no Texas, tem vários edifícios diferentes espalhados pelo seu campus. É verdade que por aqui está tudo em grande movimento… Esta possibilidade de pensar dinamicamente é uma das vantagens de Serralves, juntamente com a sua independência, o que lhe dá uma vitalidade e uma energia para o futuro.”

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A Festa dos Pássaros e das Constelação, um óleo sobre tela de 1974 com mais de quatro metros de altura Daniel Rocha
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