Como mudar o mundo sem sair do sofá

Trinidad González está obcecada com “a violência das nossas vidas íntimas”. Pájaro, a peça com que regressa a Portugal, instala essa violência numa sala de estar que talvez já tenhamos visto em qualquer lado, para que fique claro que o sistema somos todos.

Foto
Trinidad González (à esquerda) escreveu, encenou e interpreta esta peça sobre um tema que a obceca, a violência nas nossas vidas íntimas MATIAS DELACROIX/AGENCIAUNO

Há uma parte de Trinidad González que está em guerra com o mundo e outra parte que está em guerra com ela própria, por não fazer nada para o mudar. “Nada”, entendamo-nos, que esteja ao nível de “ir para o hospital tratar doentes”, o que explica parte da culpa com que a actriz, encenadora e dramaturga chilena (exactamente por esta ordem) senta as suas personagens no sofá em que começa e acaba Pájaro (2014), e parte da culpa com que ela própria, em casa, já completamente fora de cena, se senta no seu sofá.

Não há-de ser no teatro que esta culpa se resolve, pelo contrário. Em parte, é do teatro que ela vem: “A culpa acompanha-me desde sempre: a culpa de ter tido certas oportunidades e certos privilégios, a culpa de não fazer mais, a culpa de me dedicar ao teatro, no sentido em que o teatro é tão pouco concreto e tão pouco mensurável nos seus efeitos… “, diz Trinidad ao Ípsilon por telefone, não muitas horas depois de aterrar em Lisboa, onde Pájaro inicia esta quinta-feira, no Teatro Teatro Maria Matos, uma curta digressão nacional que também passará pelo Porto (2 e 3 de Junho, no Teatro Municipal Rivoli, integrando a 40.ª edição do FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica) e por Loulé (4 de Junho, Cineteatro Louletano). Pájaro amplifica essa culpa, que no fundo é a culpa de continuar a viver com o sistema capitalista global sabendo que ele é atroz, mesmo que para isso seja preciso levantar uma barricada de cinismo, ou de egoísmo, ou de vinho caro, ou de tudo ao mesmo tempo como no caso das três personagens que encontramos no sofá de uma sala de estar na madrugada mais fria do ano.

Pájaro é a peça que Trinidad escreveu para essas personagens, que são carne da sua própria carne (e não apenas por serem artistas). Mas é também a peça que escreveu para o intruso que uma delas encontra a dormir na rua, com a cabeça ensanguentada por uma pedrada recente, e convida a entrar para beber um copo – um intruso que dirá ser um pássaro, por já não se identificar com os homens. É na violência desse encontro (ou melhor: desse desencontro) que a chilena projecta a violência das relações humanas, o tema que verdadeiramente lhe interessa desde que pôs um ponto final no seu primeiro texto para teatro, La Reunión (2012), que em 2014 passou por Lisboa no âmbito do programa Próximo Futuro (este, a propósito, integra a programação de Lisboa 2017 – Capital Ibero-Americana de Cultura). “La Reunión ainda estava em cartaz quando comecei a escrever Pájaro, e é por isso que retoma uma personagem que aparecia no fim dessa peça. Quando uma pessoa tem uma ideia na cabeça, é difícil esgotá-la num só espectáculo – e na verdade eu mal a aflorava. Há autores que mesmo tendo escrito dezenas de romances dizem que passaram a vida toda a escrever o mesmo livro…”, explica-nos.

Pode vir a ser um deles, admite, está obcecada “pela violência nas nossas vidas íntimas”: a sua próxima peça vai voltar a ser sobre este assunto.

Aves raras

La Reunión, em que Trinidad González ficcionava sobre o poder (dos conquistadores, da Igreja Católica, das oligarquias) a partir de um facto histórico – a ordem de prisão dada a Cristóvão Colombo e aos seus irmãos pelos Reis Católicos, em 1500 –, terminava com um miúdo, indígena, a dirigir-se ao descobridor da América e a profetizar o seu próprio futuro: “Com sorte, poderei chegar a ser um pássaro, mas quando estiver a voar um de vocês vai atirar-me uma pedra porque sim e eu vou morrer porque sim, rebentado nalgum caminho.”

É uma imagem que nunca lhe saiu da cabeça, e que lhe permitiu aproximar-se novamente da violência – mas desta vez não é da violência brutalmente física, sanguinária, da colonização espanhola que Trinidad quer falar, ainda que a apresentação desta peça no ciclo Utopias do Maria Matos, acompanhando o programa de debates Questões Indígenas: ecologia, terra e saberes ameríndios, possa induzir o tema (e depois, lembramos, há aquele momento deste serão entre amigos em que alguém usa a palavra “nativa”, sinónimo de “pré-histórica”, como se usa um insulto…). “Em La Reunión sim, eu tratava da maneira como os brancos arrasaram a cultura indígena e impuseram a sua cultura um pouco decadente – ao contrário de outros territórios em que a colonização foi 'apenas' brutal, no caso da América Latina ela teve uma intenção civilizadora, o que a tornou muito particular. Mas aqui essa história de submissão é só um pequeno apontamento: Pájaro não vai de todo por aí, é mais sobre o modo como destruímos, às vezes sem qualquer sentido, qualquer pessoa que decida viver de maneira diferente.”

O homem-pássaro que rebenta nalgum caminho e casualmente se converte, por umas horas, na ave rara do sofá lá de casa (isto se não acabar na cama, como noutras histórias de submissão), não é, esclarece Trinidad, “nem um pobre nem um louco de origem”, simplesmente alguém que escolheu outra via por não estar de acordo com esta. “Alguém que estudou contigo, que até andou na universidade, que tem ferramentas culturais iguais às tuas – só que com uma sensibilidade, uma maneira de ser que de repente o põem fora do mundo, até que essa marginalidade passa a ser igual à de um mendigo ou de um esquizofrénico”, diz ao Ípsilon a dramaturga e encenadora que já perto da estreia acabou também por ter de acumular essas funções com um dos quatro papéis de Pájaro, o da artista idealista e um pouco retirada do mundo, ou derrotada por ele, que às tantas parece apaixonar-se pelo seu surpreendente convidado (é um auto-retrato, mas são todos…). Este homem-pássaro, continua, é um fenómeno directamente observável em todo o Ocidente (“Vivemos em sociedades tão globalizadas que às vezes é difícil encontrar as diferenças…”), e não apenas no Chile: “Pájaro é a sensação que eu tenho sobre este mundo hiper-competitivo, totalmente obcecado com o êxito, dominado pelo lucro e pelo dinheiro, em que os valores mais simples do afecto e da comunidade ficaram muito lá para trás. A violência da solidão absoluta não é um problema existencial, é um problema absolutamente concreto.” Mesmo – e aqui vamos ter de discordar de Trinidad – quando o vemos numa peça de teatro.

Gente decente

Estamos entre amigos, portanto, horas depois de um jantar em que se esvaziaram demasiadas garrafas. O sítio certo, a hora certa para a violência rebentar – com toda a sua tralha, da ameaça de cyberbullying (os telemóveis, aponta subtilmente uma cena de Pájaro, são a nova arma de destruição maciça) ao assédio sexual, do cinismo da faca nas costas ao paternalismo de mão no ombro. “A sociedade está tão, tão, tão apertada que basta um pequeno estímulo para que se solte a violência mais desatada”, reflecte Trinidad González, fazendo coro com a sua personagem-título, porque “o facto de hoje podermos ver uma decapitação no YouTube faz dos nossos tempos os mais violentos de sempre”: “Vivemos uma época terrível. Há que dizê-lo sem gaguejar. Mas há movimentos subterrâneos. São pequenas acções. Somos poucos, mas somos fortes. Somos consistentes. Somos decentes. Reconhecemo-nos nas ruas.”

É natural que Trinidad o reconheça também – e que se reconheça nele. “Há uma parte de mim, uma parte de rebeldia, de cansaço, de tristeza, de raiva, que é o pássaro. As coisas que ele diz são as coisas que eu penso, as coisas que qualquer pessoa com um pouco de sensibilidade e de consciência pensa. Como: ‘Por que é que não param de se bombardear e chegam a um acordo?’. Parece de uma ingenuidade ridícula, mas a sério: porque não?”

Foto
MATIAS DELACROIX/AGENCIAUNO

Talvez não possamos ser pássaros o tempo todo: é preciso ganhar a vida, pagar a renda. “Há muitos momentos em que nos esquecemos do mundo – e é bom, porque não estaríamos vivos se não pudéssemos alienar-nos um pouco de tudo o que é terrível.” Mas como actriz, como encenadora e como dramaturga (de novo: exactamente por esta ordem), Trinidad não trocaria os seus “momentos de hiper-consciência”, por muito que doam, por essas ausências.

É por isso que praticamente nos senta no sofá com as suas personagens – deixando bem claro que o sistema somos todos, mas permitindo que façamos o nosso coming out como gente decente: “Em Portugal o público estará connosco no palco, o que é muito inteligente, porque esta peça precisa de proximidade: os espectadores começam a sentir-se parte da festa e deixam de saber como reagir. Há alguns que gritam ‘não, não façam isso!’, outros que têm o impulso de se levantar para ajudar o pássaro. Gosto que haja esses impulsos, porque eles induzem uma reflexão activa e o teatro deixa de ser só uma experiência estética, intelectual, e passa a ser uma experiência vivencial.”

Talvez não seja assim tão absurda a ideia de mudar o mundo a partir de uma sala de estar.

Sugerir correcção
Comentar