Como montar uma casa em volta de uma salamandra

1. A Primavera voltou atrás no dia em que voei do Funchal para Lisboa. O céu já meio que fechava e logo depois ficou Inverno. Vale que venho de morar no Rio de Janeiro, toda a chuva parece uma chuvinha, todo o trânsito um paraíso. Inferno mesmo é o Ikea, divina comédia das cozinhas encastradas. Ah, montar uma casa, ainda que assoalhada-e-meia. E quando essa assoalhada-e-meia fica no Alentejo (cem euros só pela entrega) isso quer dizer: leve tudo você mesmo. Levei, com um benfeitor ao volante, alugámos uma carrinha no Prior Velho, há que anos não ia ao Prior Velho. Nesta Primavera tem-te-não-caias tudo me emociona em Lisboa, os fundos, os restos, os taxistas que dizem toda a gente está a ir embora, menina. Estou com 46, espero que aos 64 me continuem a chamar menina, prova de que ainda estarei viva. Dois carros do Ikea couberam na carrinha, em cima do estendal que já lá estava. E ainda faltava o colchão, guardado na vertical em Cascais, empréstimo de uma benfeitora. Empurrámos até entrar, força de três, foi. Daí para a frente, a incógnita era se a casa seria tão grande quanto a carrinha. Eu só a vira uma vez, aperto de mão e por mim já era. O senhorio bem tentou dissuadir-me: o frio, a humidade, de Inverno nem pensar. Mas daqui a nada é Verão, argumentei, só até Setembro, vá lá. Ele ainda pediu para pensar. O Alentejo é o contrário de qualquer coisa à venda. Vista a casa, fui almoçar com a benfeitora que viera comigo e quando começámos a brigar para pagar a conta veio o dono e disse, acabou-se, pago eu. O Alentejo é o contrário de qualquer coisa a qualquer preço. À noite, o senhorio ligou a dizer que, pronto, se eu achava que podia mesmo viver ali, então que viesse. Vou chamar-lhe Nuno, foi ele quem me apresentou à salamandra.

2. Cinco dias depois, posso dizer que tenho uma união estável com a salamandra. Não é pouca coisa, tendo em conta que começámos por ser um par S&M involuntário, nem ela me queria fazer mal nem eu queria que ela fizesse, mas aconteceu. Eu já achava que as lareiras eram como as histórias de amor, não sabia nada das salamandras. Lá chegaremos, se entretanto o meio da história não se perder. Portanto, sábado, uma carrinha a caminho do Alentejo: oliveiras, talvez cegonhas, não sei bem, porque entretanto já não se via nada. Em podendo escolher, nada como mudar de casa à noite e com chuva. Mais: à noite, com chuva numa ladeira de pedras com dois sentidos e espaço só para um. Mas como descarregar é sempre mais rápido do que carregar, em qualquer sentido, às nove da noite já estávamos prontos para um naco, umas migas, uns cogumelos, seja. Assim conhecemos o pai do dono do restaurante que no dia em que eu viera ver a casa pagara o almoço para acabar com a briga. Era a cara do António Lobo Antunes, em simpático.

3. À uma da manhã, o estrado do colchão ficou montado. Às duas da manhã, havia uma cadeira de braços. O resto eram pilhas até ao tecto. A grande vantagem é que o tecto é alto. Assoalhada-e-meia mas com tectos altos. O senhorio Nuno recolhera há muito, o benfeitor despediu-se, ficou aquele silêncio de fim de mundo, e pela calada veio o frio, coisa de tiritar. A casa é assim: a porta abre para uma entrada que já faz de sala; à direita fica o quarto e a casa de banho; à esquerda, subindo, a cozinha que fará de escritório. Piso de tijolo, paredes brancas, lá fora azul-anil, mas meia casa abaixo do nível do chão, por estarmos oblíquos, nas costas do Castelo (ainda não vou dizer qual). Em suma, não dormi. Era a salamandra ou a vida.

4. Na manhã seguinte lá estava ela, agarrada ao tecto por um tubo, imperscrutável. Eu não tinha a menor ideia de como fazer calor com aquilo. Pedi ao Nuno para nos apresentar. Ele explicou como retirar as cinzas, libertando a passagem do ar; as duas aberturas na frente: o tampo em cima; o tubo com uma válvula para combustão mais ou menos rápida. Claro, o fogo depende sempre do ar que entra. Último aviso, não tocar em nenhuma parte acesa, disse o Nuno, fica lá a pele. Depois a Marta, que é a mulher dele, explicou-me que a lenha ainda não secou de toda a chuva, que pega mal ou não pega, e o melhor era eu comprar briquetes. Assim pelo nome parecia algo frívolo, como periguetes, que no Brasil são uma espécie de meninas trepadeiras. Saí em busca delas, aproveitando uma aberta no céu. Entre o centro histórico e o maior supermercado das redondezas, devo ter visto três seres vivos, todos de boné. Quando cheguei ao corredor das briquetes, eram uns toros condensados de não sei quantos quilos. Parecia a linha gay bear da lenha alentejana.

Foto
alexandra lucas coelho

5. Quanto às acendalhas, como não recebera instruções comprei umas que cheiram a gasolina mal se abre o pacote. De volta a casa, eu ainda nem acendera o lume e já era praticamente uma bomba-suicida. Para a próxima compre das ecológicas, sugeriu delicadamente o Nuno, semi-intoxicado. Levantámos o tampo com um ferro, deitámos acendalhas, depois fósforos, depois briquetes, deu certo. O Nuno foi à sua vida, recomendando-me que alimentasse a salamandra. Tudo correu tão bem que achei que podia mesmo diminuir o ar, para prolongar a combustão. Não me ocorreu que a válvula fizesse parte do corpo da salamandra, ou seja, estivesse tão quente quanto ela, e foi assim que a válvula ficou impressa entre o polegar e o indicador da minha mão esquerda. Era o início da nossa relação S&M, que entretanto se reflectiu na mão direita. A primeira coisa que muda quando deixamos de morar na cidade são as nossas mãos. Neste momento, tenho três queimaduras, vários calos, um buraquinho e uma aparência geral de lixa. Tudo isto sem contar com o quintal, porque até ontem à noite só choveu.

6. Mas esta manhã acordei com um fio de sol a passar pela janela, depois do galo e do sino. Por cima da minha cama está um pano da Síria, pendurei-o ontem a pensar onde estará o homem que mo vendeu. Na sala, está um tapete do Afeganistão, que foi ao Rio e voltou. Na cozinha, cestos da Amazónia. E por aí saio para o meu pedaço de Alentejo. Ainda não liguei ao agricultor leitor de Agamben que me indicou esta casa, ele queria que eu provasse o seu azeite (por acaso, nos dias em Lisboa antes de me instalar encontrei o António Guerreiro em casa de um amigo comum e ele disse, eu sei quem é aquele agricultor, fui com o Agamben e a Vera Mantero a casa dele). E depois do sino e do galo a primeira coisa que ouvi esta manhã foi a canção para o Dorival Caymmi que um amigo brasileiro compôs, cantou e me deixou no Facebook. Tudo ligado, como diria a Frida Khalo.     

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